Diante das mazelas do País – desigualdade social, excesso de burocracia, corrupção e violência –, é comum que nos perguntemos como chegamos a tudo isso. O estudo da história é, sem dúvida, um caminho para a compreensão das estruturas econômicas e sociais do passado que serviram de base aos contextos atuais.
A Sociedade Perfeita – As Origens da Desigualdade Social no Brasil revela, com apuro técnico e ampla bibliografia, as origens do perfil desta nossa sociedade, onde grassa a desigualdade social.
O autor do livro é o renomado historiador e professor de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro João Fragoso, um dos mais importantes pesquisadores do passado colonial brasileiro, ganhador de vários prêmios – entre eles, o Jabuti Ciências Humanas, pela coleção O Brasil Colonial (2014), que coordenou com Maria de Fátima Gouvêa.
Logo na introdução, o autor faz um alerta: ele não está tratando do Brasil contemporâneo, seja o urbano e industrial, seja o do agronegócio. Seu estudo se debruça sobre uma época em que as “desigualdades sociais e políticas eram explicadas pelo pensamento cristão medieval e entendidas por todos como fatos imutáveis do destino”. Ou seja, as desigualdades sociais eram aceitas como fatalidade, como vontade de Deus.
Tudo isso ganhou mais amplitude com o Concílio de Trento (1565-1563), que se reuniu para realizar mudanças na Igreja ao mesmo tempo que reafirmava seus dogmas.
Fragoso lembra que, entre os séculos XVI e XVIII, nas sociedades que formavam o Ocidente católico, a ordem social era produzida pela Igreja Católica Romana. Entre as ideias difundidas estava a de que a sociedade era naturalmente hierárquica. “Aliás, ela fora criada por um Deus-Pai, onipresente e onipotente”, escreve o autor. “Assim, a Igreja Romana referendava a subordinação do camponês diante de seus senhores.”
Fragoso observa ainda que, para uma população transformar-se em uma sociedade, é necessário que ela compartilhe uma mesma visão de mundo ou, ao menos, tenha em comum “um conjunto de ferramentas intelectuais que permitam interpretar a sociedade e a natureza de modo semelhante”. E, na Europa Ocidental, durante muito tempo, a visão de mundo hegemônica foi produzida, disseminada e perpetuada pelas instituições cristãs – principalmente, pela Igreja Católica Romana.
Essa ideia de uma sociedade caracterizada pela hierarquia social era compartilhada por todos: da aristocracia até o último dos camponeses e escravos. Todos entendiam o mundo assim. Esse arcabouço nos remete ao tema da instrumentalização da religião, um processo antigo que levou à solidificação das desigualdades sociais.
O autor lembra também que o mundo sem escravismo é uma experiência recente da humanidade e frisa que, no Brasil, “talvez sejamos apenas a quarta ou quinta geração sem conviver com ele”. Na avaliação de Fragoso, se a escravidão acabou em 1888 e suas sequelas ainda não foram superadas, a razão disso deve ser procurada nas ações das gerações que viveram a partir do fim do século XIX. Essas gerações produziram ou recriaram as práticas de desigualdade social do Brasil pós-abolição.
Embora Sociedade Perfeita trate do passado, ao fim da leitura do livro estamos, certamente, muito mais aptos a compreender a realidade que nos cerca hoje.
VITRINE
Por Ana Paula Sousa
Em Os Vulneráveis, nono romance da norte-americana Sigrid Nunez, frases e personagens de outros autores são como um fio a alinhavar os pensamentos da narradora: uma escritora nova-iorquina lidando com os primeiros dias do confinamento pandêmico.
Nos ensaios de Um Pequeno Demônio na América, Hanif Abdurraqib, poeta forjado no slam, usa suas palavras ritmadas para celebrar a cultura negra dos EUA. “Tenho pensado sobre invisibilidade, hoje e sempre”, diz, como que a emoldurar o volume.
É por meio de uma edição com cara de cordel e páginas brancas e cor-de-rosa intercaladas que a José Olympio relança Romances de Cordel, que reúne textos produzidos por Ferreira Gullar no Centro de Cultura Popular, na década de 1960.
Publicado na edição n° 1324 de CartaCapital, em 21 de agosto de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Desiguais por vontade de Deus’