As centenas de milhares de homens ucranianos vivendo nas sombras da deserção refletem um país inteiro desgastado por uma guerra prolongada, marcada por recrutamento forçado, desespero e fuga em massa. A crise de deserção se converteu num sintoma incontornável de um Estado que perdeu a capacidade de sustentar sua própria mobilização militar e de garantir direitos básicos aos mobilizados.
A precariedade do treinamento, descrita como superficial e meramente burocrática, alimenta o temor generalizado de que novos recrutas são enviados direto à morte — sem preparo, sem suporte e sem perspectiva.
Deserção em massa: números que revelam o colapso
Os números oficiais, de acordo com a apuração de reportagem da Aljazira, escancaram o desgaste:
- 235 mil militares desertaram desde o início da guerra;
- 54 mil abandonaram o serviço;
- Somente entre 2024 e 2025, foram 176 mil casos de deserção e 25 mil de abandono.
A evasão supera largamente a capacidade do Estado de rastrear, deter ou punir desertores. A crise é tão profunda que, segundo relatos de militares importantes e desertores, “metade do país está foragida”, e até a polícia militar admite não conseguir processar o volume de casos.
“Mesmo na Rússia, não há tantos soldados desertando”, disse Valentyn Manko, comandante das tropas de assalto, ao jornal ucraniano Pravda no sábado (6).
Se o objetivo era manter uma força capaz de sustentar o conflito, o efeito foi o oposto: escassez crônica de pessoal, baixa motivação e desertores preferindo prisão a combate. Um militar pode ser acusado de deserção 24 horas após deixar sua unidade militar e pode enfrentar de cinco a 12 anos de prisão, de acordo com os regulamentos em tempos de guerra.
Treinamento precário e comando desestruturado
Um padrão recorrente surge dos relatos:
- treinamentos reduzidos a formalidades,
- instrutores mais preocupados em evitar fugas do que em preparar soldados,
- condições físicas degradantes e falta de estrutura básica.
A guerra prolongada expôs a desconexão entre a realidade da linha de frente e o discurso oficial.
Comandantes ignoram problemas pessoais, negam licenças e reproduzem um ambiente de descaso que incentiva ainda mais fugas.
Para muitos, a deserção se torna a única forma de recuperar autonomia sobre a própria vida. São muitos jovens recém saídos da adolescência vivendo cenas de cinema, em fugas perigosas por quilômetros de áreas hostis. Muitos ficam com sequelas físicas e psicológicas, além de não se importarem de perder o respeito de amigos e familiares.
Estado incapaz de controlar sua própria crise
A própria arquitetura institucional entra em colapso com polícia militar desfalcada, tribunais sobrecarregados e fiscalização limitada a patrulhas improvisadas em locais públicos.
Enquanto isso, desertores driblam o sistema com truques simples — usar carros de familiares para não serem identificados, evitar zonas de inspeção ou pagar subornos. O Estado ucraniano, esgotado, perdeu a capacidade de operar controles básicos.
Paradoxalmente, milhares foram anistiados e reintegrados sem punição, uma tentativa emergencial de conter o êxodo, mas que expõe ainda mais a incapacidade de resposta estrutural. A flexibilidade com os desertores revolta ex-combatentes que lidam com sequelas graves da guerra.
A normalização do medo e da ruptura social
O preço social é imenso. Amizades e famílias se desfazem, desertores são taxados de traidores, e ex-combatentes pedem punições severas, inclusive perda de direitos civis.
A guerra impôs um clima de vigilância permanente, onde sair de casa já significa risco de ser abordado por patrulhas de recrutamento. A fronteira entre Estado e cidadão se tornou uma zona de conflito.
O medo de morrer na linha de frente convive com o medo da prisão — mas, para muitos, a cela parece menos aterradora do que a guerra.
Uma mobilização que chegou ao limite
A Ucrânia vive uma contradição insustentável: precisa mobilizar 70 mil soldados por mês para recompor unidades, mas só consegue reunir cerca de 30 mil — e isso à custa de medidas cada vez mais coercitivas.
A máquina do recrutamento já opera no limite, enquanto a sociedade civil, esgotada, tenta sobreviver a uma guerra que parece interminável.
A deserção em massa não é apenas um fenômeno militar.
É o sinal claro de que a capacidade do Estado de manter sua própria coesão entrou em erosão.
A Ucrânia enfrenta uma crise que não se vê nas frentes de batalha — uma implosão silenciosa, onde o medo, o desgaste e a desilusão corroem o que resta da estabilidade social.
Com informações da Aljazira