Urbanização e saúde pública.

Por Felipe A. P. L. Costa

1. SAI A PILHAGEM, ENTRA O COMÉRCIO.

Com o advento do estado e o surgimento das grandes civilizações, mudou de vez a identidade das forças que pesavam sobre o destino dos grupos e a sorte dos indivíduos. Diminuiu o peso das imposições ecológicas. O protagonismo foi transferido para as lutas políticas travadas no interior de cada sociedade. As relações intergrupais mudaram de tom – e.g., saques e pilhagens foram substituídos por alternativas mais civilizadas, como o comércio.

O surgimento dos estados nacionais, especificamente, deu origem a novas demandas, algumas bastante curiosas e insuspeitas, como a realização de censos periódicos visando identificar e monitorar o tamanho e as demandas da população.

2. GANHOS DEMOCRÁFICOS.

O advento da agricultura permanente logo se traduziu em ganhos demográficos. Enquanto os bandos de caçadores-coletores permaneceram mais ou menos do mesmo tamanho, os assentamentos se tornaram cada vez maiores. O que fez com que as aldeias se tornassem um lugar cada vez mais seguro contra saques ou pilhagens. Aliás, essa imunidade conferida pelo tamanho pode ter sido um dos fatores a contribuir para a disseminação da agricultura.

A densidade populacional também mudou de patamar. As mesmas áreas que eram habitadas antes por pequenos bandos nômades (e.g., 50-100 indivíduos) passaram a abrigar assentamentos cujas densidades estavam agora uma ou duas ordens de grandeza acima (e.g., 500-10.000 indivíduos).

3. SAÚDE PÚBLICA.

Uma parcela desse aumento na expectativa de vida se deu por conta de quedas sucessivas na mortalidade infantil. E a mortalidade parece ter caído em razão de duas providências relativamente simples: (1) melhorias no atendimento às gestantes e parturientes; e (2) adoção de medidas básicas de saneamento público – e.g., manter limpas as fontes de água para consumo humano e cuidar dos doentes em locais separados, sobretudo em casos de doenças contagiosas.

4. MEGACIDADES.

Alguns milhares de anos após o surgimento das primeiras cidades, a maior parcela da população ainda estava a viver no campo, ao lado das áreas de cultivo. A urbanização acelerada é um fenômeno bastante recente.

NOTAS.

[*] Artigo extraído do livro A força do conhecimento & outros ensaios: Um convite à ciência (no prelo). Sobre os livros anteriores, ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes. Para adquirir o pacote completo ou algum volume específico, ou para mais informações, faça contato pelo endereço [email protected]. Para conhecer outros artigos ou obter amostras dos livros, ver aqui.

[1] Há uma longa e sangrenta tradição de contatos inamistosos entre grupos humanos, como já vimos antes neste livro. O motivo? Saques, pilhagens, guerras etc. Embora a adoção da diplomacia como um modo de estreitar laços e resolver conflitos seja algo milenar, alguns dos mais importantes organismos multilaterais só foram criados no século passado. A ONU, por exemplo, foi fundada em 24/10/1945 e a OMS, em 7/4/1948. Sobre o peso sombrio das guerras modernas, eis as palavras de Koestler (1981, p. 15): “Se me pedissem para mencionar a data mais importante da história e pré-história da raça humana, eu responderia sem a mínima hesitação: o dia 6 de agosto de 1945. A razão é simples. Desde o alvorecer da consciência até o dia 6 de agosto de 1945, o homem precisou conviver com a perspectiva de sua morte como indivíduo. A partir do dia em que a primeira bomba atômica sobrepujou o brilho do Sol em Hiroshima, a humanidade como um todo deve conviver com a perspectiva de sua extinção como espécie. Aprendemos a aceitar a efemeridade da existência pessoal, ao mesmo tempo em que tínhamos como certa a potencial imortalidade da raça humana. Essa crença deixou de ser válida. Precisamos rever nossos axiomas. A tarefa não é fácil. Antes de uma ideia se firmar na mente, existem períodos de incubação. A doutrina de Copérnico, que tão drasticamente degradou o status do homem no Universo, demorou quase um século para penetrar na consciência dos europeus. A nova degradação de nossa espécie para o status de mortalidade é muito mais difícil de digerir.

[2] 70 anos é uma média sujeita a variações, a depender de país, renda, sexo etc.

[3] Muitos avanços na luta contra as doenças foram obtidos tão somente pela suspensão de hábitos que promoviam a disseminação de patógenos. Um estudo de caso que se tornaria paradigmático, datado de meados do século 19 (antes, portanto, da identificação dos micróbios como agentes etiológicos), investigou a causa da morte de parturientes por febre puerperal (condição provocada por bactérias que se instalam no interior do sistema reprodutor feminino) em uma maternidade na Áustria – ver Hempel (1973, p. 16-20); para detalhes e problematização, Oliveira & Fernandez (2007). A falta de higiene dos médicos que atendiam as mulheres estava na origem do problema.

[4] Para um balanço do impacto das doenças transmissíveis em escala global, ver Garrett (1995). Diz-se que uma doença transmissível é endêmica quando a sua manifestação é recorrente, embora de alcance limitado, restrito a uma região. Se a disseminação ultrapassa os limites habituais, falamos então em epidemias. Uma epidemia de alcance mundial, como foi o caso da Covid-19 (2020-2023), é referida como pandemia. Nas palavras de Wilson (1980, p. 45-6): “O termo endêmico é usado para descrever uma situação na qual, embora possam ocorrer flutuações estacionais, as características da doença repetem-se a cada ano. O nível de endemicidade, ou prevalência, não é necessariamente alto em situação de doença estável. Reciprocamente, a prevalência de algumas doenças, como a esquistossomíase, pode ser maior do que 90% em certas comunidades. O termo epidêmico é usado para descrever situação em que os níveis de doença mostram variação aleatória e extrema. A malária e a fasciolíase são dois exemplos que podem mostrar essa característica. As epidemias são muito dramáticas, porém, [no] longo prazo, a doença endêmica pode causar maior dano, particularmente se a prevalência for alta. Parece razoável supor que as doenças endêmicas sejam reguladas de algum modo para produzir um padrão estável, mas que as epidêmicas não estejam sujeitas às mesmas restrições.

[5] Sobre as estatísticas citadas, ver Grauman (1976) e ONU (2019).

[6] Dessas 33 megacidades, seis estão na China; cinco na Índia; duas no Brasil, EUA, Japão e Paquistão; e uma em cada um dos seguintes 14 países: Argentina, Bangladesh, Colômbia, Congo (RD), Egito, França, Indonésia, Nigéria, Peru, Filipinas, México, Rússia, Tailândia e Turquia.

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REFERÊNCIAS CITADAS.

+ Davis, K. 1977 [1967]. A urbanização da humanidade. In: Vários. Cidades: A urbanização da humanidade. RJ, Zahar.

+ Garrett, L. 1995 [1994]. A próxima peste. RJ, Nova Fronteira.

+ Gowlett, JAJ. 2016. The discovery of fire by humans: a long and convoluted process. Philosophical Transactions of the Royal Society B 371: 20150164.

+ Grauman, JV. 1976. Orders of magnitude of the world’s urban population in history. United Nations Population Bulletin 8: 16-33.

+ Hempel, CG. 1973 [1966]. Filosofía de la ciencia natural. Madri, Alianza.

+ Koestler, A. 1981 [1978]. Jano. SP, Melhoramentos.

+ ONU. 2019. World Urbanization Prospects: The 2018 Revision (ST/ESA/ SER.A/420). NY, United Nations (UN/DESA/PD).

+ Ponting, C. 1995 [1991]. Uma história verde do mundo. RJ, Civilização.

+ Singer, P. 1979. Economia política da urbanização, 6ª ed. SP, Brasiliense.

+ Wallace, RA. 1980. Sociobiologia: O fator genético. SP, Ibrasa.

+ Wilson, AR. 1980 [1979]. Introdução à parasitologia, 2ª ed. SP, EPU & Edusp.

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Última Atualização: 23/08/2024