Desdolarização da economia mundial
por Maria Luiza Falcão Silva
A Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication (Swift) é a rede global de mensagens que facilita a comunicação entre instituições financeiras de diferentes países para que transferências de fundos e outros pagamentos internacionais ocorram de forma rápida e segura. O sistema Swift não realiza transações financeiras diretamente. Permite a troca de instruções entre bancos, utilizando um conjunto padronizado de códigos, o Swift/BICA.
Criado em 1973 por 239 bancos, em 15 países, para padronizar o formato das informações e assim viabilizar o intercâmbio de comunicados entre entidades financeiras ou corporativas, eletronicamente, o Swift é o sistema mais usado pelos bancos para possibilitar transferências internacionais. É considerado fundamental para que os fluxos dos pagamentos transnacionais e do comércio exterior aconteçam.
O sistema Swift é uma espécie de cooperativa controlada pelos bancos centrais dos países ricos: Bélgica, França, Estados Unidos, Canadá, Alemanha, Itália, Holanda, Suécia, Suíça, Japão e Reino Unido. Nenhuma representação dos países em desenvolvimento. O dólar, devido à sua posição como moeda hegemônica e de reserva internacional, e sua ampla utilização em transações internacionais, é o dinheiro dominante para essas “mensagens” via Swift.
Quando há sanções financeiras, como as aplicadas sobre a Rússia por ocasião da invasão da Ucrânia, há risco do sistema Swift ser acionado, como foi, para punir países. Os principais bancos russos foram excluídos do sistema, numa concordância entre a União Europeia, a Inglaterra e os Estados Unidos. Se não houvesse algum sistema alternativo, os prejuízos para a Rússia teriam sido incalculáveis. A Federação Russa estaria totalmente vulnerável e isolada do sistema financeiro internacional.
Há sistemas alternativos ao Swift, desenvolvidos por países como China e Rússia. São o China Interbank Payment System (CIPS) e o Financial Messaging System of the Bank of Russia (SPFS). O CIPS, em particular, vem ganhando cada vez mais importância como alternativa para transações transfronteiriças utilizando o yuan chinês ou renminbi, especialmente entre a China e outros países do Sul Global com os quais se relaciona financeiramente e comercialmente.
Existe, também, uma iniciativa ainda não consolidada, o BRICS PAY, um mecanismo de mensagens de pagamento, planejado para ser descentralizado e independente, para que os países do BRICS+ (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul e novos membros) possam negociar entre si por meio de suas próprias moedas.
O que há de animador nesse “front”? A China e seus aliados deram um passo gigante na busca pela redução da dependência global do dólar norte-americano e do Swift. No início de abril, desse ano, o governo chinês testou com os Emirados Árabes (todos dois membros do BRICS+) um modelo de transferência bancária que utiliza o renminbi (RMB) digital, cuja unidade é a moeda chinesa yuan. O resultado foi uma operação sem a necessidade de passar por bancos intermediários e que foi concluída em 7 segundos, um recorde entre grandes transações transfronteiriças. A implicação dessa operação super bem-sucedida é o enfraquecimento do Swift. O recorde, estarreceu o mundo. Via Swift essas transações levam entre um e cinco dias úteis. Mas não é apenas uma questão de competição por rapidez. É uma questão de soberania e instrumento de esvaziamento do dólar na economia global.
O Banco Popular da China anunciou que o sistema de liquidação transfronteiriça do RMB digital será totalmente conectado aos dez países da ASEAN (Associação das Nações do Sudeste Asiático: Brunei, Camboja, Indonésia, Laos, Malásia, Mianmar (Birmânia), Filipinas, Singapura, Tailândia e Vietnam) e seis países do Oriente Médio (Kuwait, Emirados Árabes, Irã, Qatar, Omã, Bahrein) o que significa que cerca de 38% do volume do comércio mundial contornará o sistema Swift, dominado pelo dólar americano, e entrará diretamente no “momento do RMB digital”. Este jogo financeiro, faz parte do que vem sendo apelidado de “Batalha Avançada do Sistema Bretton Woods 2.0”. Contudo há muito que caminhar. O yuan não tem a liquidez do dólar, do euro ou da libra. Mas o progresso do CPIS começa a romper barreiras antes intransponíveis. E Trump vem contribuindo para isso enfraquecendo o dólar como moeda hegemônica.
A batalha é uma extensão da discussão de como reformar o sistema financeiro internacional que surgiu após o desgaste do que foi acordado em Bretton Woods, no início dos anos 1970. Criado após a Segunda Guerra Mundial, o sistema de Bretton Woods estabelecia um mecanismo de câmbio fixo e paridade do dólar com o ouro. Nos anos 1960, o arranjo começou a ser desestabilizado, com o aumento da pressão sobre a paridade do dólar com o ouro. Os petrodólares inundaram a economia mundial e dificultaram para os EUA manter a moeda conversível a uma paridade fixa, de US$ 35 por onça troy (31,104 gramas).
Em 1971, o presidente Nixon decidiu, unilateralmente, abolir o lastro em ouro do dólar marcando o fim do sistema. O dólar então se torna uma moeda fiduciária como outra qualquer. Significa que ele não é conversível ou lastreado em um ativo fixo como o ouro ou a prata. Então, seu valor é originado na confiança e autoridade do emissor.
Com a eliminação deste vínculo formal, o peso relativo do ouro na composição das reservas internacionais caiu de forma significativa. No final de 2021, o ouro, correspondia a 17% das reservas oficiais das economias avançadas, bem abaixo dos 80% verificados em 1950; e 7% nas economias emergentes e em desenvolvimento, contra os 30% de 1950.
A discussão sobre o Bretton Woods 2.0 busca analisar e propor mudanças para lidar com as necessidades e desafios da economia global atual, incluindo o aumento da dívida global, a necessidade de financiar o desenvolvimento sustentável e a crescente desigualdade econômica.
Há algum tempo, a China vem empreendendo esforços para impulsionar o uso do yuan chinês, como moeda internacional, seja para transações comerciais ou para reserva de valor. Assim, diversos países elevaram a cota de yuan nas suas reservas internacionais e passaram a utilizá-lo para liquidar transações transnacionais.
No caso do Brasil, o yuan ultrapassou o euro e se tornou a nova moeda a ocupar o segundo lugar na composição das reservas internacionais brasileiras, de acordo com relatório do Banco Central divulgado no fim de março. As reservas brasileiras passaram a ser compostas por 80,42% em dólar norte-americano (USD), 5,37% em yuan (CNY), 4,74% em euro (EUR), 3,15% em libra esterlina (GBP), 2,52% em ouro, 1,86% em iene (JPY), 1,01% de outras moedas.
Contudo, o USD está em processo de desvalorização em consequência das bravatas do Trump que levou países a se desfazerem dos títulos de dívida do Tesouro Americano. A confiança no país emissor da moeda internacional foi abalada pelas estripulias do presidente irresponsável. Os investidores começaram a se desfazer de títulos do governo americano. Eles venderam, venderam e venderam disse Heather Long, colunista econômica do Washington Post. “Isso não é normal. Normalmente, os títulos do governo americano são um porto seguro. Sempre que as ações despencam ou há turbulência no mundo, os investidores correm para comprar títulos do Tesouro dos EUA. É o equivalente a uma canja de galinha para mercados doentes. Mas, de repente, esses títulos ficaram amargos”. A liquidação refletiu o medo de que a própria economia americana fosse uma aposta arriscada, completou Heather.
“A desdolarização já está acontecendo em um mundo farto da política americana arbitrária e da má gestão da economia doméstica e global,” observou David Ignatius colunista de assuntos internacionais do mesmo jornal.
Este cenário de guerra comercial e incerteza econômica impulsiona a procura por ativos seguros. A demanda por ouro, que é visto como um refúgio para investidores preocupados com a instabilidade global, disparou e o seu preço também.
Não faltando mais nada, nas últimas semanas, tem crescido rumores em torno de um novo plano americano — O Acordo de Mar-a-Lago — para chacoalhar o sistema monetário internacional. Aparentemente, com base em um documento para discussão de cerca de 40 páginas, elaborado pelo candidato à presidência do Conselho de Consultores Econômicos da Casa Branca (CEA, na sigla em inglês), Stephen Miran, no final do ano passado, o acordo faria com que os parceiros comerciais dos Estados Unidos ajudassem a enfraquecer o dólar e se comprometessem a fornecer financiamento de baixo custo e longo prazo ao governo dos EUA, reforçado pela ameaça de tarifas mais altas ou remoção de garantias de segurança. Tudo na surdina porque não houve nenhum anúncio do governo Trump ou mesmo um twitter dele. Mas, indiretas dadas por Miran — juntamente com várias declarações do Secretário do Tesouro Scott Bessent — levaram observadores de Wall Street e analistas econômicos da mídia internacional a acreditar que tal iniciativa está de fato a caminho de ser implementada.
O Acordo baseia-se na visão equivocada de que a hegemonia global do dólar é prejudicial para os Estados Unidos. A forte demanda pela moeda norte-americana teria levado: i) a uma supervalorização do dólar e, em consequência, à redução da competitividade das exportações dos EUA, ii) a déficits comerciais persistentes, e iii) ao sucateamento da indústria manufatureira americana.
O argumento é de que o dólar está persistentemente supervalorizado em grande parte porque os ativos em dólar funcionam como moeda de reserva mundial. Em resposta, o acordo proposto exigiria que os EUA e seus parceiros comerciais interviessem nos mercados de câmbio para vender ativos em dólares numa tentativa de desvalorizar a moeda norte-americana. Algo que já vem acontecendo e sobre o que já comentamos nesse artigo. No entanto, como as vendas externas de títulos do Tesouro dos EUA e as perspectivas de perdas em dólares poderiam elevar as taxas de juros americanas e comprometer o financiamento dos déficits orçamentários federais, os governos estrangeiros teriam que aumentar a duração de seus títulos remanescentes, inclusive comprando títulos do Tesouro de 100 anos com cupom zero do governo americano — pagamento de rendimentos apenas na liquidação. Fundamentalmente, a proposta é de financiamento gratuito dos EUA pelo resto do mundo, por um século. E como não se poderia esperar que os países fizessem isso voluntariamente, seriam ameaçados com tarifas mais altas ou com a perda do apoio militar americano caso não cumprissem. Ou seja, conforme explicita o próprio Miran: “Trump pode reconfigurar os sistemas financeiro e de comércio global para o benefício dos americanos”.
Mais uma bravata do governo Trump. Algo desestabilizador como foram as tarifas. No meu entendimento, só aceleraria o processo de fuga do dólar. A revolução digital já testada com sucesso pela China e as rupturas geopolíticas e as refragmentações em curso no mundo, podem acelerar as mudanças na direção de um padrão monetário multipolar.
Maria Luiza Falcão Silva é economista (UFBa), MSc pela Universidade de Wisconsin – Madison; PhD pela Universidade de Heriot-Watt, Escócia. É pesquisadora nas áreas de economia internacional, economia monetária e financeira e desenvolvimento. É membro da ABED. Integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É autora de Modern Exchange-Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies: Recent experiences of selected developing Latin American economies, Ashgate, England/USA.
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