Desconhecimento cívico
por João Silva
A disfunção da governança pública explica boa parte da nossa estagnação econômica e social
O Brasil está longe, muito longe, de ser uma pátria de rentistas, assim como também está distante de ser uma economia encalacrada e sem meios para evitar recessões severas na busca de sua redenção, o caso da Argentina. E, no entanto, as falas dos governantes e o noticiário corrente só tratam de inflação, juros, déficit público, impostos e quase nada sobre investimento produtivo e inovação.
Contraditoriamente, falava-se mais de dinamismo empresarial e de investimentos privados e públicos no tempo do dirigismo econômico pela mão pesada do Estado, entre as décadas de 1950 e 1970.
Delfim Netto, chamado de “czar da economia” da ditadura tal o seu poder à base de decretos-leis, adorava receber jornalistas para contar, em primeiras mão, a chegada de outra multinacional, de banco investindo em siderurgia, da venda para a Europa de carros da Volks ou da Ford etc. A vibe dos negócios era tão intensa que a imprensa tinha seções exclusivas para notícias empresariais, separadas da cobertura econômica convencional. O que mudou?
Os governos seguintes ao autoritarismo, todos socialdemocratas e assumidamente amigáveis ao mercado, aumentaram tanto os impostos quanto a dívida pública, sem conseguirem vitaminar o crescimento do produto interno bruto (PIB) nem melhorar os indicadores de fé do que virou mantra oficial da ortodoxia econômica: os saldos do orçamento de receitas e despesas federais, em regra deficitários, e a relação entre a dívida pública federal e o PIB, crescente.
Essa tem sido a prioridade de todos os governos desde a reforma monetária de 1994, com sucesso somente sobre a taxa de inflação. Mas com o ônus de taxas de juros pagas aos detentores dos papéis de dívida do Tesouro Nacional de dois dígitos e francamente acima da taxa de inflação dos preços ao consumidor que presume combater.
Apesar da retórica agressiva de cada extremo do arco ideológico, do fundamentalismo de mercado do governo passado às políticas mais assistencialistas que antipobreza da gestão atual, a verdade é que o desenvolvimento, ou “desenvolvimentismo”, tem sido nota de rodapé – uma promessa dependente de “fundamentos”. Quais fundamentos?
Omissões privadas e públicas
A resposta deveria partir dos que aportam seus capitais nacionais e estrangeiros em investimentos produtivos, disputando com o bem-bom dos papéis de dívida do Tesouro. Eles não têm risco nem exigem a dedicação e o trabalho que as atividades empresariais requerem.
Com o crescimento e a renda per capita estagnadas há décadas, sem competitividade na cena econômica global, exceto bens agrícolas e minerais, com infraestrutura sucateada e limitada, sem indústrias tecnologicamente inovadoras – afora Embraer, Suzano, Weg e outros poucos outliers -, com índices sofríveis da educação, todo o foco das atenções deveria estar em fazer, construir e inovar. Mas não.
Gasta-se energia em criticar os sintomas, como os juros absurdos, a ortodoxia do Banco Central, os gastos públicos excessivos, e não o que leva a tais distorções. Quer-se impostos e juros civilizados sem ficar de mal com os políticos e governantes responsáveis pelas decisões legislativas e executivas que resultam nestas sequelas.
A formulação da política monetária, por exemplo, é função do CMN, o Conselho formado pelos ministros da Fazenda, que o dirige, e do Planejamento, mais o presidente do BC. A autonomia operacional do BC existe apenas para cumprir os ditames do CMN, o que inclui as políticas de crédito e cambial. No entanto, fala-se apenas de BC.
A omissão do CMN é do governo que o dirige, levando o BC a ocupar o vazio institucional. Tanto quanto o STF avançar sobre as funções legislativas, a pretexto de julgar teses constitucionais, e o TCU (Tribunal de Contas da União) assumir-se como parte do judiciário, quando se trata de um órgão consultivo do Congresso Nacional.
Lucidez de João Carlos Ferraz
A ignorância sobre a função institucional de cada poder autônomo e harmônico entre si, como diz a Constituição, explica o grosso da disfuncionalidade do Estado nacional, a causa de nossa estagnação. Má-fé também, mas aí é dos que tiram proveito dessa situação.
O economista João Carlos Ferraz, o principal autor intelectual da reforma monetária do Real, juntamente com Pérsio Arida, retrata o nosso longo autoengano num texto primoroso, intitulado O Sequestro da Imaginação. Merece atenção. Diz ele nesta leitura obrigatória:
“Tenho a impressão de que a predominância do neoconservadorismo macroeconômico se deve à falta de imaginação da esquerda. Deve-se à sua insistência numa receita assistencialista anacrônica e à sua incapacidade de enfrentar os velhos vícios do patrimonialismo e o corporativismo. O contraponto ao reducionismo fiscalista não pode ser o apoio à captura do Estado pelas forças do patrimonialismo – que toma o público como o privado que ocupa o Estado – e do corporativismo – que desvirtua as políticas públicas em benefício de setores e grupos específicos.” João Carlos continua:
“Ao contrário, é preciso reconhecer e combater as forças de ‘captura’ ilegítimas de renda, que se contrapõem às fontes ‘criadoras’ de renda. As forças de captura da renda estão, hoje, tanto no executivo, como no legislativo, e, cada vez mais, também no judiciário, nas agências e nas autarquias”. E alerta:
A “balcanização do orçamento, com proliferação de vinculações, é justamente o que levou à desordem fiscal do tempo da inflação crônica, como diagnosticada no documento que deu origem ao Real”.
A vez da inteligência política
Bater bumbo para retomadas cíclicas, como agora, com dólar saindo do susto, mas a R$ 5,51 – R$ 1,50 acima do nível que as condições externas da economia permitem -, e bolsa subindo, embora chegando a 130 mil pontos, uma pechincha, não ajuda, pois cria a sensação de que o caminho está correto, apesar de faltar o investimento.
É mais promissor ter consciência, como diz João Carlos Ferraz, de que “a combinação do pacto tecnocrático com o presidencialismo de coalisão que manteve o país no atoleiro da mediocridade por três décadas agora dá sinais de ter chegado ao limite”.
Não se esperam mudanças de fundo até 2026, embora uma epifania sempre possa acontecer. Ou as lideranças empresariais saiam da zona de conforto e ajudem a construir uma inteligência política junto aos partidos, a academia etc. O retorno vale muito a pena.
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