Descobrindo o bem que há
por [Francirosy Campos Barbosa](https://www.ffclrp.usp.br/)
No show com Maria Bethânia, Caetano Veloso interpretou o louvor “Deus Cuida de Mim”, do pastor Kleber Lucas, que diz:
“Eu preciso aprender um pouco aqui
Preciso aprender um pouco ali
Eu preciso aprender mais de Deus
Porque Ele é quem cuida de mim.”
O que mais chamou atenção não foi a escolha do louvor, mas o comentário de Caetano sobre o “crescimento das igrejas evangélicas”. A frase soou desconexa e sem desenvolvimento, deixando dúvida sobre se era uma crítica, elogio ou mera observação. Talvez, se tivesse sido contextualizada, houvesse maior empatia por parte do público — ou talvez não.
As críticas a Caetano, porém, me parecem desproporcionais, frequentemente carregadas de preconceito e elitismo. Se ele canta músicas ligadas Òrìṣà e às tradições de matriz africana, por que não poderia interpretar canções de outras religiões que lhe façam sentido? Pode ter sido até uma forma de homenagear seus filhos evangélicos.
Curiosamente, o show também trouxe a canção “Os Mais Doces Bárbaros”, com versos que evocam forças das religiões afro-brasileiras:
“Com a espada de Ogum,
E a bênção de Olorum,
Como um raio de Iansã,
Rasgamos a manhã vermelha.”
Essa justaposição de referências espirituais e culturais reflete a pluralidade brasileira, mas também suscita questionamentos: os tempos mudaram? Caetano ficou “careta”? As reações ao episódio, nos dias que se seguiram, foram intensas. Inicialmente concordei com algumas críticas, mas, ao refletir, percebi que há um viés de classe e preconceito na forma como muitos abordam religiões que fogem à sua crença ou não crença.
A pluralidade religiosa do Brasil exige reflexão e respeito, como Vagner Gonçalves da Silva analisa em A Intolerância Religiosa. Ele destaca como o preconceito racial e a hegemonia cristã marginalizam religiões de matriz africana, criticando a laicidade seletiva do Estado, que favorece algumas crenças e reprime outras. Já Rosenilton Silva de Oliveira, em A Cor da Fé, amplia o debate ao explorar como os segmentos afro-brasileiro, católico e evangélico se apropriam de heranças africanas no campo religioso, mostrando que a fé assume múltiplas cores e significados.
Segundo o IBGE, mais de 50% da população evangélica é composta por negros e pardos. Não dá para discutir religiosidade no Brasil sem cruzar com as questões de raça e classe. Mesmo em sociedades que se pensam laicas, a religião continua a oferecer sentido para a existência humana e a marcar presença no espaço público, como destaca Regina Célia Reyes Novaes no prefácio de A Cor da Fé.
Como pesquisadora do Islam, reconheço o desafio de vencer os preconceitos e desconfortos associados a diferentes expressões de religiosidade. No Brasil, o Islam também se liga à resistência dos malês, embora muitas vezes seu crédito histórico tenha sido atribuído apenas a migrantes árabes. O apagamento dos negros está por todos lados e crenças, não caminha sozinho.
O problema não está em Caetano cantar um louvor, mas no desconforto que isso gerou. E o porquê desse desconforto? Se em um Brasil verdadeiramente laico, deveria haver espaço para todas as crenças e para quem não crê. Ao criticar o conservadorismo dos evangélicos, é essencial lembrar que a maioria são mulheres negras e periféricas, cuja fé muitas vezes representa o único amparo em meio ao descaso do Estado. Aliás, essas mulheres podem dizer, cantar: “Deus cuida de mim”, porque o acolhimento religioso muitas vezes é a única forma de sossegar das atribulações cotidianas.
Essas mulheres, longe de serem passivas, agenciam sua sobrevivência e a de seus filhos todos os dias — embora de formas diferentes dos brancos de classe média. Assim, talvez o debate deva focar menos em ressentimentos e mais em cultivar o respeito à pluralidade que marca nosso país.
Neste final de ano, seria importante refletir sobre como avançar rumo a uma convivência mais inclusiva e respeitosa com todas as formas de fé — ou a ausência dela. Afinal, existirmos: a que será que se destina?
Francirosy Campos Barbosa é antropóloga, docente no Departamento de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo) no campus de Ribeirão Preto, pós-doutora pela Universidade de Oxford, na Inglaterra, coordenadora do Gracias (Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes), autora entre outros livros de Hajja, Hajja – a experiência de peregrinar e diretora do documentário, Allah, Oxalá na trilha Malê, entre outros. E-mail: [email protected]
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