Inteligência Artificial é Máquina Pensante?
por Ulysses Silva
Têm sido objeto de discussão as capacidades da Inteligência Artificial, suas aplicações e limites. Pesquisas recentes sobre o tema têm sido publicadas em vários artigos e ensaios. Eu mesmo pesquisei e notei.
O artigo “Máquinas com inteligência artificial podem adquirir consciência?”. publicado no The Conversation, de Maria I. Cobos e Ana B. Chica, levantou questões dignas de atenção.
“As evidências científicas atuais mostram que, para que a consciência ocorra, é necessário um sistema capaz de processar informações selecionando parte delas para torná-las disponíveis globalmente (primeiro recurso) e que avalie, aprenda e retifique com base na experiência (segundo recurso).
Os cálculos realizados atualmente pelas máquinas não atendem a essas características e, além disso, carecem de uma mente e de um organismo vivo capaz de construir representações sensoriais tanto do ambiente quanto do estado interno de seu próprio organismo (o hardware, no caso das máquinas)”, escrevem as autoras.
Já no artigo “Inteligência Artificial não faz Literatura, mas pode fazer Ciência” da Academia Brasileira de Ciências, as opiniões foram bem mais ousadas:
“O que está ocorrendo nessa revolução de IA é que as bases de dados se tornaram imensas, para além até da nossa capacidade de curadoria. Aliadas a um poder de processamento cada vez maior, surgiram máquinas com capacidade de dominar a linguagem natural (inglês, português, etc…) para muito além do que os especialistas imaginavam ser possível. ‘Muitos imaginavam que quando as máquinas dominassem a linguagem natural seriam verdadeiramente inteligentes. Pois bem, está acontecendo’, refletiu o Acadêmico Osvaldo Novais Jr, professor da Física da USP e especializado em linguística computacional.
Por isso, embora ainda longe de dominarem a atividade criativa nas artes, as IA já estão perto de dominar outro ramo da cultura: a ciência. ‘Creio que estamos nos aproximando de um novo paradigma científico, segundo o qual a própria máquina vai gerar conhecimento. Essa será a maior de todas as revoluções tecnológicas, pois não precisará mais do humano no processo’, afirmou Novais”.
Diante disso, recupero algumas anotações minhas sobre as chamadas máquinas inteligentes.
Frequentes vezes, e tão frequentes que de um ponto de vista estatístico poderíamos dizer sempre, cientistas fracassam quando tentam ir mais longe do que lhes autoriza seu trabalho em áreas especializadas. Nem é preciso lembrar Laplace, que ao fim de uma demonstração matemática concluiu que Deus existe. Bastaria lembrar a concepção em voga no início do século XX de que nada mais havia a descobrir no mundo da física. Foi preciso que um filósofo lhes puxasse as orelhas, ao expor o luminoso pensamento de que “a realidade é inesgotável”.
De passagem, anoto que poetas, escritores, por vezes têm sido mais brilhantes descobridores que os próprios cientistas. A passagem não-linear do tempo, por exemplo, a retomada de acontecimentos idos sem que se entre numa artificial e artificiosa máquina do tempo, encontrou sua acabada expressão no romance de Marcel Proust. A fina lâmina que separa o prazer do sofrimento, verso de um soneto de Shakespeare, antecipa em séculos o conhecimento da ação das drogas sobre um dependente. A Metamorfose, de Kafka, é mais eloquente, e eterna, que o melhor tratado sobre relações familiares, ao narrar o trato que a família dá a seus excluídos. Goethe, em Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister, alcança as modernas teorias pedagógicas, ao realizar um romance que é uma teoria do conhecimento encarnada.
Dizendo de outra maneira: incorre também em amesquinhamento, em portanto fragoroso erro, o cientista que eleva coisas à altura do homem. E esta crítica que fazemos não é um simples imperativo moral. Ou um bater de pés birrento para berrar contra o que por força virá. Esta crítica, permitam o abuso da palavra, é ciência. Pois o que viria a ser uma “máquina pensante”?
– Ora, aquela máquina que raciocinasse, que tomasse decisões, conversasse, e escrevesse ela própria este artigo. Isto significa que essa máquina relacionaria fatos de sua própria história, perdão, queremos dizer, organizaria os dados gravados em sua memória, perdão, queremos dizer, ordenaria dados em seu arquivo, e desses dados arquivados tiraria conclusões, perdão, geraria um novo dado que não estava gravado, e desse novo produziria ações, perdão, optaria, perdão, daria manifestação absolutamente imprevisível, vale dizer, manifestaria o que não estava programado.
Ou seja, tal inteligência artificial deveria ser um produto que se autoconstrói, que se faz a si mesma. Vale dizer, ainda, tal inteligência artificial deveria ser, ela própria, uma criadora de outra inteligência. E essa reprodução não seria aquela de dois espelhos frente à frente. Ela se reproduziria melhor do que se produziu, mas à margem da história, das relações com o ambiente físico: ela seria um abstrato ideal numa sala ideal, sala solta, suspensa, num espaço tão ideal que se tornaria vazio. Compreendam, isto não é um paradoxo. Isto é uma abstração oca do conhecimento do fenômeno humano.
Uma vez o professor e físico Marcelo Gleiser escreveu: “no futuro não muito distante, teremos de lidar com o que significa ter uma máquina que pensa ou, mais realisticamente, uma máquina tão veloz que simula o pensamento”. Mas esta é a concessão de quem antes esperou tudo, de quem esperou o impossível, e depois se satisfaz com o que lhe parece razoável. Concede em receber em lugar da máquina realmente pensante uma simulação, ele quer dizer, uma imitação de pensamento.
Se fosse possível uma evolução das máquinas, se pensarmos nas máquinas desde a maquininha de calcular de Pascal, a coisa mais natural, perdão, a coisa mais maquinal seria um inteligentíssimo produto que usasse todos nós, idiotas humanos, para executar as aborrecidas tarefas de somar, multiplicar e dividir números, por exemplo. Vale dizer, alcançaríamos uma inversão de piada. Mas no reino das possibilidades que se materializam, há problemas, se não me engano em razão de falhas dos nossos próprios circuitos. Num curto, queremos dizer: o que seria essa imitação do pensamento? Executar operações maçantes, trabalhosas, que demandam tempo sem acrescentar um mínimo de criação à tarefa? – Não, isto já se faz, e nem em pensamento poderia ser um. O quê, então?
Para não cair numa enfiada retórica, numa imitação miserável do grande Padre Vieira, imaginemos o que seria o sistema de imitar pensamentos: ele seria aquele que imitasse a reflexão, o voltar ao passado, para dele extrair, ver o que antes não vira, concluir, antever, criar e criar-se. Sentimos, neste passo, que descrevemos ações do pensamento apenas, a natureza mesma da imitação ainda não. Apenas descrevemos o modelo a ser copiado. Seria algo que reproduzisse o já feito? Não falo de fotografia, falo de algo que reproduzisse o processo de “fabricar” a Mona Lisa. Seria isto? Permitam: um clone de Da Vinci em chips coordenados e autônomos? Perdão, pois a nossa intenção não é a de fazer rir. Sejamos então mais primários: deveríamos ter um objeto que reproduzisse o processo de a partir de duas informações conhecidas gerar uma terceira, até então desconhecida. Mas isto ainda não é o reproduzir, porque seria uma coordenação típica do pensamento. Então voltemos: a imitação do pensamento, para ser imitação, seria a reprodução de processos realizados fora da máquina. Mas para que isto se desse, é imperioso que conhecêssemos antes como, de que forma, isto se dá. Teríamos, portanto, que estudar mais o homem, no governo do homem, para o homem e pelo homem.
E para isto jamais seremos, como espécie, obsoletos. Somos imprescindíveis para nossa superação, para nós mesmos. Somente para o amesquinhamento somos dispensáveis.
Estas linhas foram escritas sem uso de IA.
Ulysses Silva é escritor e jornalista. Autor do “Dicionário Amoroso do Recife”, “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “A mais longa duração da juventude”. Colunista do Vermelho e do Brasil 247. Colaborador do Jornal GGN.