Desafios à Publicação Científica no Brasil: Entre a Exclusão e a Mercantilização.

por Luiz Henrique Lima Faria

A publicação científica no Brasil opera sob uma lógica paradoxal, oscilando entre o enclausuramento da produção acadêmica em círculos restritos, que dificultam o acesso a perspectivas divergentes e externas ao seu arco relacional, e uma liberalização irrestrita, na qual estudos de rigor questionável encontram espaço mediante ao mero pagamento de taxas.

Nesse contexto, de um lado, situam-se os periódicos bem ranqueados em repositórios como Web of Science e Scopus, qualificados como de alto impacto e revestidos de prestígio, mas frequentemente acusados de perpetuar a hegemonia de um seleto grupo de pesquisadores consolidados, marginalizando vozes emergentes. De outro, proliferam os chamados periódicos ‘predatórios’, que, sob o pretexto da acessibilidade, operam sob uma lógica mercantilista e são criticados por deficiências no processo de revisão por pares. Ambos os extremos evidenciam fissuras estruturais que comprometem a integridade e o avanço do conhecimento acadêmico no Brasil, convertendo a ciência ora em um reduto exclusivo, impermeável a novas perspectivas, ora em um produto desqualificado, no qual a legitimidade cede lugar à conveniência financeira.

Nos periódicos de alto impacto, a seleção de artigos é frequentemente questionada pela suspeita de estar atrelada a redes de relacionamento pessoais e institucionais, perpetuando a hegemonia de grupos já consolidados e dificultando a ascensão de novas perspectivas. Esse cenário alimenta um ciclo fechado, no qual pesquisadores estabelecidos moldam os critérios de avaliação, aceitação e publicação, restringindo a inserção de novos autores e limitando a diversidade de linhas de pesquisa e abordagens metodológicas dentro de seus respectivos campos de estudo.

Esse fenômeno, no entanto, não é uma invenção brasileira. No estudo intitulado The Howard-Harvard Effect: Institutional Reproduction of Intersectional Inequalities, publicado em 2024 por Kozlowski e coautores, foi identificado que a publicação científica nos Estados Unidos está concentrada em poucas instituições, afetando desproporcionalmente pesquisadores de fora desse grupo e os tópicos de pesquisa a eles associados. Assim, tanto no Brasil quanto no cenário internacional, observam-se indícios de que a centralização acadêmica perpetua desigualdades estruturais, restringindo a pluralidade da produção científica e limitando o avanço do conhecimento a partir de perspectivas diversas.

Outra crítica recorrente aos periódicos de alto impacto diz respeito ao processo de seleção de avaliadores. Embora a revisão por pares seja essencial para assegurar a qualidade e a credibilidade das publicações, a ausência de critérios transparentes para a escolha dos avaliadores pode ser instrumentalizada para excluir pesquisadores menos integrados a determinados círculos acadêmicos. Relatos frequentes indicam que manuscritos são rejeitados sem uma avaliação substancial ou submetidos a exigências excessivas e, por vezes, arbitrárias. Como consequência, a dificuldade de publicação nesses periódicos não apenas limita a disseminação do conhecimento, mas também perpetua desigualdades institucionais e regionais, favorecendo pesquisadores vinculados a instituições prestigiadas em detrimento daqueles que atuam em contextos menos privilegiados.

Por outro lado, os periódicos acusados de “predatórios” surgiram, dentro de uma lógica de mercado oportunista, como uma válvula de escape ao sistema excludente dos periódicos de alto impacto. No entanto, sua atuação tem sido amplamente criticada por comprometer o rigor científico e permitir a publicação de estudos sem um crivo adequado de qualidade. Nesse contexto, a cobrança de taxas de publicação sem um criterioso processo de revisão pode favorecer a disseminação de trabalhos de mérito duvidoso, impactando negativamente a credibilidade da produção acadêmica.

No artigo Revistas predatórias e ciência de baixo impacto: cortando o mal pela raiz, publicado em 2024 no Jornal da USP, Nícolas Carlos Hoch e Carlos Frederico Martins Menck afirmam que o avanço do modelo de acesso aberto (open access), que originalmente visava democratizar o conhecimento, acabou por transferir os custos da publicação dos leitores para os próprios autores, por meio das taxas de processamento de artigos (Article Processing Charges – APCs), que podem alcançar valores exorbitantes. Esse modelo, segundo os autores, criou um incentivo perverso, no qual periódicos menos escrupulosos passaram a tratar os artigos científicos como uma mercadoria, aceitando manuscritos sem o devido rigor na revisão por pares e aumentando exponencialmente a quantidade de publicações para maximizar seus lucros. Em alguns casos, grandes editoras estabeleceram infraestruturas digitais capazes de publicar milhares de artigos por ano, intensificando o problema da chamada “ciência de baixo impacto”, na qual a quantidade de publicações sobrepõe-se à qualidade e à relevância dos estudos.

Ao mesmo tempo, a classificação generalizada desses periódicos como ‘predatórios’ pode ser interpretada como um mecanismo de defesa dos interesses de grupos acadêmicos estabelecidos. Esse enquadramento indiscriminado reforça a hierarquia acadêmica e mantém intacto o oligopólio da produção científica, desqualificando, muitas vezes, iniciativas legítimas que buscam democratizar o acesso à publicação. Assim, a crítica aos periódicos menos consolidados nem sempre ocorre de maneira imparcial, podendo servir como estratégia para perpetuar a concentração do poder sobre a produção do conhecimento.

À margem desse embate entre os periódicos “exclusivos” e os “predatórios”, estão a maioria dos periódicos científicos brasileiros classificados nos extratos B2, B3, B4 e C no Qualis/CAPES. Mantidos principalmente pelo esforço de acadêmicos comprometidos com a difusão do conhecimento, esses periódicos desempenham um papel essencial na democratização da ciência em um país marcado por desigualdades estruturais e limitações de financiamento à pesquisa. No entanto, enfrentam grande invisibilidade dentro da própria comunidade acadêmica e são frequentemente preteridos na escolha de submissão de artigos.

Enquanto pesquisadores estabelecidos priorizam revistas restritas a seu círculo acadêmico, autores menos inseridos em redes prestigiadas acabam recorrendo a periódicos que cobram taxas de publicação, pressionados pelas exigências institucionais de produtividade. Esse cenário reflete uma dinâmica editorial excludente, na qual prestígio acadêmico e critérios de avaliação reforçam a concentração do conhecimento em um grupo limitado de publicações, dificultando o reconhecimento legítimo de iniciativas voltadas à democratização da ciência.

Diante desse panorama, a ciência brasileira necessita urgentemente de soluções que garantam a integridade da revisão por pares sem perpetuar a exclusão de pesquisadores fora dos grandes centros acadêmicos. Reformas no financiamento dos periódicos, incentivo a repositórios de acesso aberto e maior transparência nos processos editoriais são essenciais para mitigar as distorções do atual sistema. Além disso, é fundamental ampliar o debate sobre formas alternativas de avaliação científica, que não estejam exclusivamente atreladas a métricas quantitativas e fatores de impacto, mas sim à relevância e originalidade das contribuições.

Enquanto tais soluções não são amplamente implementadas, a publicação científica no Brasil segue refém de um modelo editorial que oscila entre a rigidez excludente e a permissividade oportunista. Se a ciência pretende ser um instrumento de avanço coletivo, é imperativo que seu processo de validação esteja fundamentado em critérios transparentes e equitativos.

Diante disso, surge uma questão essencial: é possível conceber um modelo editorial científico simultaneamente acessível e rigoroso? A atual estrutura impõe barreiras à evolução do conhecimento, ora pelo hermetismo dos periódicos “exclusivos”, ora pela fragilidade avaliativa dos periódicos “predatórios”. Essa dicotomia compromete a meritocracia acadêmica, subordinando o reconhecimento científico a redes de influência e acesso a recursos financeiros.

Uma solução viável seria a criação de um Banco Nacional de Avaliadores Externos, acessível a todas as áreas do conhecimento. Esse banco reuniria acadêmicos criteriosamente selecionados por méritos objetivos e devidamente remunerados, garantindo a valorização do trabalho de revisão. O processo avaliativo seguiria um modelo duplo-cego aprimorado: revisores não teriam conhecimento da autoria dos artigos nem do periódico responsável pela publicação. Essa inovação asseguraria maior transparência e imparcialidade, reduzindo vieses institucionais e mercadológicos.

Ao desvincular a avaliação da produção científica de interesses excludentes e pressões comerciais, essa proposta contribuiria para um ambiente acadêmico mais equitativo, no qual rigor metodológico e relevância científica prevalecessem sobre redes de influência e alinhamentos institucionais.

Cabe, portanto, aos pesquisadores e instituições que fomentam a pesquisa no Brasil não apenas questionar as distorções do sistema vigente, mas assumir um papel ativo na construção de mecanismos que assegurem uma produção e disseminação do conhecimento mais justa e acessível. Isso exige o aperfeiçoamento dos processos de avaliação e publicação, bem como políticas que estimulem a pluralidade temática e metodológica, removendo barreiras à renovação do pensamento acadêmico.

Somente por meio desse esforço coletivo será possível consolidar, no Brasil, um sistema de publicação científica verdadeiramente meritocrático, no qual a excelência intelectual seja um patrimônio acessível a todos que se dedicam à construção e ao avanço do conhecimento.

Luiz Henrique Lima Faria – Professor do Instituto Federal do Espírito Santo (IFES) e Editor-Chefe da Revista Interdisciplinar de Pesquisas Aplicadas (RINTERPAP).

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Last Update: 17/03/2025