Conflitos de repertório, por Antonio Machado
As últimas semanas têm sido pródigas em situações de dissonância cognitiva no coração da governança da macroeconomia. O presidente Luís Inácio Lula da Silva voltou a dar entrevistas frequentes e, em todas, não esconde a vontade de exaltar as maravilhas da economia, ao mesmo tempo em que se obriga a não exceder o seu entusiasmo para não desautorizar o discurso de austeridade do ministro da Fazenda, Fernando Haddad.
Economia puxada há mais de quatro décadas pelo consumo mantido de forma crescente a duras penas, já que dependente de transferências de renda do orçamento federal em grande parte de curso obrigatório e indexada à inflação, cada governante eleito adia a discussão que se faz necessária sobre a qualidade da política econômica. E o faz ou por desconhecer as soluções ou por temer mudanças.
Compreende-se a angústia dos governantes e políticos ao tratar da austeridade fiscal cobrada, sobretudo, pelos detentores de papéis da dívida pública, o tal “mercado financeiro”, ou “farialimers”.
Do total de 176 milhões de pessoas ativas no país, das quais 109 milhões na força de trabalho, mais de 80 milhões recebem recursos públicos todos os meses, a maioria de programas sociais como Bolsa Família, BPC, INSS, seguro-defeso, além de 12 milhões de funcionários do setor público. Sai desses dinheiros boa parte do movimento total da demanda, que representa cerca de 60% do PIB.
Os governos que tentaram pôr a mão nesse vespeiro o fizeram meio sem fazer. Temer impôs o teto de gasto federal na Constituição com apoio do Congresso. Bolsonaro passou quatro anos sem reajustar o funcionalismo e sem aumento real do salário mínimo. Lula pôs fim ao teto de gasto, outra vez com apoio do Congresso, trocado pelo tal “arcabouço fiscal”, que permite ao governo gastar algo mais, desde que o déficit anual não exceda 0,25% do PIB e tenda a zero.
Mas alto lá, que ninguém bate a cabeça na parede até sangrar. Na partida do teto, Temer aprovou aumentos salariais do funcionalismo – e Bolsonaro excluiu militares de restrições fiscais e se tornou subitamente populista, ao elevar a R$ 600/mês o Bolsa Família na véspera da eleição em 2022. Lula manteve e expandiu o pagamento.
E vamos, assim, inchando o gasto público, que definha o PIB – o desafio que direita e esquerda não se apresentam para resolver.
Excessos improdutivos
Esse é um balanço de soma zero. Se o consumo é mantido ou cresce como proporção do PIB (produto interno bruto), que por sua vez não avança pelo baixo dinamismo do investimento, o gasto obrigatório, representando 92% da LOA (lei orçamentária anual), é compensado pelo corte das rubricas deixadas ao arbítrio do governante.
Como a compensação orçamentária para evitar o acumulo de déficits recorrentes é sempre imperfeita mais devido a razões políticas que técnicas, as despesas excedentes às receitas são financiadas com a emissão de papéis de dívida do Tesouro Nacional. Sem problema se o recurso for usado com parcimônia, e, em especial, se o gasto não bancado por arrecadação tributária impelir investimento que cresça a base produtiva e sua produtividade, entre energia, transportes, processamento de dados, educação técnica etc.
Só que não tem sido assim. O excesso de gasto é em transferências que visam compensar a falta de empregos formais no setor produtivo e em custeios de má governança das atividades típicas de Estado e em sua administração. O que vai à faca dos ditos “ajustes fiscais” é o já parco dinheiro do investimento da LOA para obras públicas, o que impacta o crescimento e não alivia o investimento privado.
Entretenimento ensaiado
Os governantes desconhecem este quadro? Não, conhecem bem, mas ou por se sentirem impotentes ou por não lhes dar importância, apelam à ajuda de marqueteiros para construir narrativas convincentes.
O repertório de Lula é o de “levantador do PIB”; o do ministro da Fazenda é o do bom moço aflito com a dívida no banco. À exceção de Fernando Henrique, solidário com o ministro Pedro Malan nas bolas quadradas, os demais recorreram ao “nada a declarar”. Lula, não: comprou a briga entre gastar, que “é vida”, segundo sua ex-chefe da Casa Civil e ex-presidente Dilma Rousseff, e gastar menos, como lhe pede Haddad no contraponto ensaiado para agradar farialimers.
Por ora tem funcionado, mas como uma boa narrativa requer vilão e culpados, ou o distração não funciona, o presidente do BC, Roberto Campos Neto, e a Selic elevada entraram no enredo. Ele deu motivos, ao aceitar ser homenageado pelos discípulos de Bolsonaro, que o indicou como primeiro chefe do BC com autonomia formal.
Nada disso fará o juro baixar, o gasto diminuir, a arrecadação de impostos crescer, o investimento produtivo bombar. Mas os memes da oposição e do governismo elevam o faturamento das redes sociais.
O debate interditado
Uma discussão para valer deveria assumir não o risco de solvência fiscal, que não existe, mas a qualidade da governança do setor público. Essa à reforma que importa. Discutir sobreposições, como a Constituição delimitar educação, saúde e segurança a estados e municípios, e o orçamento federal ser acionado para pagar a conta.
É preciso entender que o papelório do Tesouro absorve o grosso da tesouraria da banca, vitaminada pelo caixa de empresas e pessoas, levando a minguar o dinheiro alocado ao crédito e ao investimento.
É esse empoçamento que fortalece o poder dos traders de papéis da dívida pública, implicando taxas de juros sem paralelo no mundo, fruto do dinheiro tornado escasso – lato sensu, impagáveis.
É atentar para as grandes empresas de concessões, todas de fundos sem que nenhum tenha controle nem tenha expertise na área. Mais da metade da capitalização vem de fundos abertos, sujeitos, portanto, a saques devido às oscilações de mercado.
Tais estruturas de capital são precárias, estão no limite de seus balanços e só entrarão em novas licitações com funding barato e de longo prazo do BNDES ou com captações de investidores externos.
Os sinais todos são de exaustão fiscal, como o de transferências de renda, não por si, porque necessárias, mas por compensar e bem parcialmente a falta do dinamismo gerador de bons empregos. Só uma política econômica voltada à oferta dará conta. E juros em níveis iguais aos cobrados no mundo serão o detonador do processo. Até lá seremos entretidos com narrativas, memes e broncas ensaiadas.
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