Em um fim de semana de 2008, a jovem Victoria Martina Chaves Gallo, 15 anos, foi convidada, com outras amigas, para uma festa em uma chácara em São João da Boa Vista.
No meio da festa, os rapazes inventaram um jogo de cartas, no qual quem era derrotado deveria tomar um copo de vodka. Victoria ficou embriagada. As amigas decidiram voltar para a cidade, mas ela ficou com receio de aparecer embriagada na casa da mãe.
Continuou no jogo, aprofundou a embriaguez e, segundo ela, desmaiou. Quando acordou deu-se conta de que estava nua, com fóruns no abdômen. E constatou que fora estuprada.
Imediatamente a mãe contatou um advogado. Havia possibilidade de comprovação imediata do ocorrido, o testemunho de duas colegas que estavam com ela na festa e saíram mais cedo.
Depois, um exame que constatou o estupro. As amigas se dispuseram a depor e o advogado entrou com a representação, pedindo a instauração de inquérito na Delegacia da Mulher da época. Foi lavrado o Boletim de Ocorrência e o inquérito andou. Foram ouvidos os acusados, as testemunhas. O delegado relatou e enviou para o fórum. Foram apontados 6 rapazes – 2 maiores de idade – que participaram do estupro coletivo.
Feita a denúncia à delegacia da cidade, foi instaurado um inquérito. O caso veio parar com o promotor Nelson O´Reilly, casado com a tia de um dos envolvidos – e alvo de uma correição do Conselho Nacional do Ministério Público por abusos cometidos no exercício do cargo. A partir daí, a vida de Victória virou um inferno.
O promotor passou a pressionar para desqualificar a acusação. O´Reilly enviou o inquérito para outro delegado para fazer novas oitivas de Vitória. O advogado de Vitória estranhou, devido à proximidade do delegado com o promotor. Orientou Vitória a contar o que havia acontecido e a acompanhou na oitiva.
Aí se deu conta de que o delegado conduzia o interrogatório procurando marcar a vítima como moça de vida livre, tratando-a como responsável pelo próprio estupro. O advogado interveio e foi admoestado pelo delegado:
– Você não pode interferir na minha oitiva!
A resposta foi:
– Posso sim, o senhor está tentando induzir a menina a falar coisa que não aconteceu.
Nos dias seguintes, o promotor O´Reilly obrigou a menina a dar pelo menos cinco depoimentos, com exigências explícitas: teria que ser sozinha, sem participação nem da mãe nem do advogado.
Em todos os depoimentos, insistia-se em uma versão oposta: a menina seria culpada, pelo fato de não ser mais virgem na ocasião do estupro e ter uma vida sexualmente livre.
“O promotor Nelson me fez dar depoimento pelo menos 5x e também ameaçou arquivar o caso se eu não fosse ouvida dentro do que ele gostaria: sem intervenção de advogado ou da minha mãe”. E ela tinha apenas 15 anos.



Houve um processo demorado para que a denúncia fosse aceita, conta Victoria. Em determinado momento, o advogado entrou com denúncia de suspeição do promotor, devido à sua proximidade com um dos acusados.
“Quando foi solicitado seu afastamento pelo MP, deixou um parecer que focava muito em “quem eu era” e “o que eu fazia”. Deixando transparecer que a minha palavra não seria levada em consideração pela minha vida pregressa”.
Com 15 anos, Victoria viu-se alvo de ataques pesados da sociedade sãojoanense, Não conseguiu mais emprego, não conseguiu se matricular, E acabou deixando a cidade e mudando-se para Curitiba, para morar com o pai.
Depois disso, tem sido uma longa luta para se reabilitar.
“Meu processo ficou desaparecido por muitos anos sem que eu tivesse a possibilidade de recorrer das sentenças injustas. Outro fato ainda sobre o promotor, é que quando eu fiz uma denúncia, por meio do projeto As Justiceiras, ele mesmo arquivou a denúncia, que sequer chegou a ir para a corregedoria. E agora, por último, fiz uma manifestação no MPSP que foi sumariamente arquivada sem que eu entendesse os motivos. Mas eu refiz a manifestação na corregedoria geral do MP e estou aguardando”.
No dia 24 de fevereiro deste ano, foi protocolada uma denúncia no Conselho Nacional de Justiça.
No despacho, lê-se as seguintes exposições:
Aponta a Demandante: “
– Processo nº 0003798-36.2008.8.26.0568: Ação penal contra os acusados maiores de idade, arquivada após absolvição por ‘insuficiência de provas’, desconsiderando confissões parciais e laudos.
-Processo nº 0011281-49.2010.8.26.0568: Ação contra menores, resultando em medidas socioeducativas brandas.
– Extravio de Autos: A família alega desaparecimento temporário do processo principal, posteriormente localizado, mas com lacunas documentais”
“Acrescenta que: “A vítima foi exposta a interrogatórios humilhantes, com foco em seu histórico pessoal, em desrespeito à Lei Maria da Penha (Art. 10) e à
Convenção de Belém do Pará. (…) O Judiciário local não aplicou o protocolo de escuta especializada (Lei 13.431/2017), expondo Victoria a repetidos depoimentos traumáticos”.
“Há no relato encaminhado, portanto, indicação de possível inobservância da Res. CNJ 492/2023. Junto aos documentos anexos à denúncia, consta peça que pretende a demandante seja considerada como inicial de peça voltada à análise deste Conselho, na qual constam os seguintes pedidos:
“1. Apuração de Responsabilidades: – Investigar a conduta do magistrado e servidores envolvidos, com ênfase nas falhas no processo nº 0003798-36.2008.8.26.0568.
– Requisitar cópia integral dos autos e do processo disciplinar do ex-promotor Nelson O’Reilly.
2. Revisão do Caso: – Determinar a restauração completa dos autos e designar juízo competente para reexame das provas, com observância da Súmula 608 do STJ sobre violência sexual contra vulneráveis.
3. Medidas de Proteção à Vítima: – Assegurar à vítima assistência multidisciplinar (psicológica, social e jurídica), conforme Lei 14.022/2020.
4.Políticas Preventivas: – Recomendar ao TJ/SP a implementação de capacitação em gênero para magistrados e promotores, com base nas Diretrizes Nacionais do CNJ para Julgamento com Perspectiva de Gênero”
A marcação foi cerrada. Em 7 de novembro de 2008, O´Reilly voltou a se manifestar, para se certificar “se houve interferência ou ingerência da genitora ou do advogado na inquirição da suposta vítima”. Na manifestação, dizia para “instar a vítima e sua genitora sobre quais os dispositivos da Constituição Federal e do Estatuto do Advogado que lhes dão o direito de só prestarem declarações e depoimentos em juízo, já que tal prerrogativa só se dá em favor de quem é indiciado ou autor de fato”.
Enfatizava que as declarações e depoimentos eram privativos da autoridade que investiga o crime, “não se admitindo que sejam substituídos por requerimentos, máxime, quando truncados, confusos e lacunosos, como se observa nesses autos|.
Terminava dizendo que, não havendo o atendimento do postulado, “já se vislumbra a inexistência de justa causa, que ensejará o arquivamento deste inquérito”.
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