Democracias em transe

por Douglas Portari, especial para Jornal GGN

A infância e adolescência marcadas por um certo nomadismo – seu pai trabalhava para o governo norte-americano, levando sua família a viver em países como Colômbia, Taiwan, Coreia do Sul, Inglaterra e Indonésia, entre outros – talvez expliquem em parte a ampla gama de interesses desse jornalista e a longa lista de lugares para os quais viaja todos os anos, reportando sobre seus conflitos, quedas de regime e revoluções, e retratando ditadores e guerrilheiros, lideranças da esquerda e da direita.

Nascido na Califórnia quase por capricho (a família tinha se mudado de El Salvador havia pouco), Jon Lee Anderson, aos 68 anos, continua seguindo uma rotina de décadas, que começou nas florestas das Américas do Sul e Central. No ano passado, entre outros lugares, esteve no Equador, entrevistando o presidente Daniel Noboa; e também na Síria, testemunhando os destroços da ditadura Bashar al-Assad; no Brasil, conversou, mais uma vez, com o presidente Lula; e, na Argentina, perfilou o presidente Javier Milei.

Uma vida revolucionária

Esses entrevistados fazem parte de um extenso rol, que inclui nomes como Augusto Pinochet, Fidel Castro, Hugo Chávez e Gabriel García Márquez (perfil, aliás, que lhe rendeu o convite para se tornar maestro na Fundação Gabo, à época Fundación para un Nuevo Periodismo Iberoamericano, dando oficinas de jornalismo). Anderson também é autor de livros, como A Queda de Bagdá (2005) eo recém-lançado em espanhol He Decidido Declararme Marxista, dois volumes que compilam artigos dos últimos 25 anos.

Mas Che Guevara: uma Biografia (Che – a Revolutionary Life, no original), lançado no fim dos anos 1990, é talvez o mais lembrado. Foi com a pesquisa para este livro que ele conseguiu descobrir, quase 30 anos depois da morte do guerrilheiro argentino, o local onde seus restos mortais (e de outros revolucionários) foram enterrados na selva boliviana. Anderson ainda coleciona prêmios, como o Overseas Press Club e o Maria Moors Cabot, este justamente por seu trabalho jornalístico na América Latina e Caribe.

Solícito, o repórter passou a entrevistado. Conversamos por pouco mais de uma hora e meia, em que Anderson opinou sobre democracia, extrema-direita, capitalismo, jornalismo e de como todos esses temas estão imbricados e o têm preocupado, no mundo, em geral, e na América Latina, em particular: “É onde comecei minha carreira. Vejo as diferenças, mas também os pontos em comum de muitos dos países latino-americanos por conta de sua língua, geografia e, em alguns casos, história política compartilhada. E o que eu acho fascinante sobre o Novo Mundo, que inclui a América do Norte, é a natureza sincrética de suas sociedades”.

Como quase sempre, eu não consegui fazer todas as perguntas que tinha preparado, mas nesse quesito jornalístico parece que estou em boa companhia, como vocês vão descobrir.

Jon, só em 2024, você escreveu sobre, entre outros temas, a Síria, Venezuela, Haiti, Brasil, Equador, também abordou o ativismo político de Elon Musk, fez um perfil de Javier Milei [os artigos podem ser encontrados no site da The New Yorker]… O que te leva a buscar esses tópicos e que fio condutor você vê em todas essas histórias?
Jon Lee Anderson –
Bem, basicamente, há vários temas que sempre atraíram meu interesse e também há certos países ou problemas que eu sigo continuamente e, às vezes, tenho a oportunidade de retomá-los diretamente. Falando sobre o Brasil, por exemplo, é um país que me interessa há muito tempo. Comecei minha carreira como jornalista no Peru, na verdade, na Amazônia, e sempre tive um forte interesse nessa região. E é menos sobre um país do que sobre uma região e seus problemas. Então, os primeiros textos que escrevi foram sobre a selva peruana e, na verdade, isso é curioso, bem no entorno e, em alguns casos, provavelmente, se sobrepondo à fronteira brasileira. E sempre que tive a oportunidade, voltei à região.

Talvez não seja algo tão óbvio, para alguém que foi rotulado como ‘o cara da guerra ou do Oriente Médio’, interessado em revoluções, mas eu tenho retornado com mais frequência nos últimos dez anos. Eu vou quando posso para cobrir histórias tanto sobre a Amazônia, como também sobre a política do Brasil e, às vezes, sobre como esses dois temas se fundem. Por exemplo, a história que fiz no ano passado sobre o que eles chamam de patrulha da Amazônia [um grupamento especial do Ibama], como Lula e seu governo – obviamente muito diferente do governo anterior – estavam lidando com a situação Yanomami. Foi um esforço para acompanhar uma região que eu havia explorado antes, mas em uma área diferente. Eu estive no Pará com os Kayapó vários anos antes, vendo a maneira como os garimpeiros haviam tomado conta da vida de uma comunidade indígena. E, nesse caso, foi um esforço para olhar como o novo governo estava tentando evitar uma situação de emergência, mas não fazendo isso de forma muito eficaz.

É uma espécie de conversa contínua que estou tendo tanto com Lula, como com os brasileiros, sobre seu país fascinante, este país que de alguma forma é tão análogo, eu acho, aos Estados Unidos. Isso pode surpreender as pessoas, mas ambos são países continentais que de alguma forma são muito insulares. O Brasil tem esse aspecto extraordinário e fascinante em que, porque seu interior é coberto por árvores, ainda está lutando de alguma forma as batalhas do século 19. Enquanto os Estados Unidos tinham planícies e foram capazes de exterminar seus povos indígenas ou expulsá-los e se assentar em toda aquela terra. Essa espécie de batalha pela natureza selvagem ou fronteira ainda está muito viva no Brasil. Eu acho isso profundamente fascinante e perturbador, além de importante. Então, sempre que posso, convenço meus editores de que devo voltar. E por conta da minha cobertura política aí e por ter estabelecido uma espécie de relacionamento com alguns dos líderes políticos, incluindo Lula, sou capaz de tentar combinar minha reportagem de campo com encontros diretos com pessoas de influência.

Com Milei, ele era a figura incontornável da região. Quero dizer, desde o momento em que ele chegou ao poder, ele tem sido o líder a que todos os olhos estão voltados, não apenas na região, mas em todo o mundo. Inesperadamente, para alguém tão radical e extremista em sua retórica quanto ele, se tornou o queridinho de Davos e alguém que o FMI queria ajudar. E a Argentina é um país importante. Claro, como todos sabemos, tem sido governada por populistas de esquerda ou centro durante a maior parte dos últimos 20 anos. Essa foi uma mudança e eu estive lá para a posse apenas para ver isso. Eu queria estabelecer um marcador, queria ter isso relatado. Então eu esive lá em dezembro de 2023 e vi Milei fazer seu discurso e juramento, sendo empossado na presidência, acompanhado por Bolsonaro, [o presidente da Hungria, Viktor] Orbán, [o líder do partido de extrema-direita espanhol Vox, Santiago] Abascal, o rei da Espanha, etc…

Então, eu tenho estado interessado na ascensão do populismo extremista e neste novo autoritarismo, claro, desde que Donald Trump surgiu em cena há uma década. E mesmo antes do ano passado eu fiz coisas semelhantes. Eu fui à posse de Bolsonaro, em 2018, escrevi um perfil dele. Eu tenho feito esforços para tentar entender este fenômeno que está acontecendo, principalmente da perspectiva da América Latina, mas não exclusivamente. Eu estive na África e na Europa, nem sempre escrevendo sobre isso, mas às vezes tendo encontros para lapidar minha própria compreensão do que está acontecendo.

Isso para mim é uma maneira de entender o tabuleiro de xadrez na medida em que sou capaz. Você pode argumentar que muito do que estamos vendo agora deriva da Guerra Fria, de questões não resolvidas. A esse respeito, meus escritos sobre, ou reflexões sobre, a Venezuela e o que aconteceu no verão passado, quando as eleições foram supostamente roubadas por [Nicolás] Maduro, foram algo que eu tive que observar e abordar e escrever sobre. Porque este é um país que eu conheço. Eu conheci [Hugo] Chávez muito bem. Eu escrevi sobre ele há 25 anos, eu assisti sua ascensão como um populista nacionalista de esquerda há um quarto de século. E eu conheço, me encontrei e fiz um perfil de Maduro também, como de alguns dos líderes da oposição.

Jon Lee Anderson in Oruzgan on Eagle Base.

Eu achei esses eventos particularmente interessantes porque nós agora vimos uma quebra na esquerda. Uma quebra com seu líder indiscutível, não apenas da esquerda na América Latina – eu estou falando de Lula agora –, mas o líder indiscutível do hemisfério, da região fora dos Estados Unidos, digamos. Lula, com essa habilidade única que ele tem de falar com todos, sua combinação de carisma e inteligência e ambição de colocar o Brasil firmemente na mesa dos adultos. Seja como um líder dos BRICS ou como uma força que poderia mediar conflitos como Ucrânia e Rússia ou para garantir um assento no Conselho de Segurança da ONU, ele está realmente em um patamar próprio. Os outros líderes, sejam [Emmanuel] Macron ou [Joe] Biden ou [Vladimir] Putin, vão se sentar com ele. Não há mais ninguém na região que tenha esse tipo de influência.

Milei pode tentar se inclinar para isso, mas os outros não chegam perto. Nesse sentido, pela primeira vez vimos uma quebra na esquerda nos anos pós-Castro. Então, como isso se desenrola eu não sei. Mas esse negócio da esquerda revolucionária é outro dos temas que me interessam e que tenho seguido por anos. Novamente, isso tem algo a ver, eu acho, com o excepcionalismo do Brasil, como o país continental da região, linguisticamente diferente, suas fronteiras são todas selva com seus vizinhos, mas é a potência da região. E Lula é essa figura extraordinária que se destaca no cenário mundial, ainda que da velha guarda em muitos aspectos. Suas batalhas por justiça social têm a ver com a fome e algumas questões antiquadas, não de igualdade de gênero, por exemplo, e assim por diante. E ele se encontra em um duelo com outro personagem da velha guarda, Bolsonaro e o bolsonarismo, que representam os tipos de ‘vapores’ persistentes das ditaduras militares de meados do século 20 e de uma classe de colonos que ainda quer se comportar como cowboys no âmago de uma sociedade racialmente carregada e polarizada.

Já o Haiti é um país que eu tenho seguido tanto quanto posso nos últimos 15 anos, desde o terremoto. Eu tinha uma conexão familiar lá, minha irmã mais velha nasceu lá, meus pais viveram no Haiti antes de eu nascer. E eu tenho um forte sentimento de que o Haiti representa, para todos nós, e especialmente aqueles de nós no Ocidente, a última chance de fazer algo certo em um mundo multilateral estabelecido no pós-Segunda Guerra Mundial, que vem falhando em atender aos problemas do mundo. Parece-me, sentimento pessoal, que se não podemos consertar o Haiti, não podemos consertar nada – e eu não quero dizer ‘consertar’ em um sentido neocolonialista. Eu estive lá há dois anos e fiz um artigo. É intrigante também porque o Haiti representa talvez a ponta mais afiada desta tendência que estamos vendo na América Latina da falha do Estado, e em alguns casos captura do Estado pelo crime organizado, democracias tóxicas, ascensão do controle territorial e estatal pelo crime organizado. É simplesmente inacreditável o que estamos testemunhando e é uma espécie de retorno à barbárie – e aqui não estou falando do Haiti. Eu estou falando da comunidade internacional. Porque se eles estão dispostos a permitir que esse tipo de coisa aconteça, isso mostra um tipo de renúncia da bússola moral ou do imperativo moral na arte de governar no cenário mundial. Claro, isso está começando nos Estados Unidos e é profundamente preocupante.

A América Latina tem muitas das cidades mais violentas do mundo, em boa medida, fruto da herança colonial e do intervencionismo do Ocidente. Você acha que isso pode explicar em parte um suposto pendor autoritário da região, esse anseio por ‘regimes fortes’? E, cobrindo a região desde a década de 1980, você acha que isso tem se intensificado?
JLA –
Sim, concordo. Acho que concordo com a tese. E acho que o principal problema aqui é que o Estado de Direito nunca foi estabelecido adequadamente. E há, você sabe, em uma escala móvel, pode-se argumentar que, no Uruguai, o Estado de Direito foi excepcionalmente bem observado. Também o Chile, apesar de sua recente explosão social, e o que levou à ascensão de [Gabriel] Boric. Estes foram os dois países que, apesar das diferenças entre eles, eram mais estáveis. E onde parecia que o Estado de Direito era seguido em um grau muito maior do que na maioria dos países vizinhos. Acho que esse é o maior problema. Você pensa em países como o México, e realmente vê uma falta de Estado de Direito. E onde vemos isso em primeiro lugar? No nível da aplicação da lei e, em seguida, no nível do Judiciário. Apenas para dar um exemplo, se você é mexicano ou alguém viajando pelo México, você não sabe se a força policial está trabalhando para um dos cartéis, muitos policiais trabalham para os cartéis. Se você olhar para as prisões que ocorreram de funcionários públicos ao longo dos anos, remontando até os anos 1980, verá que o chefe de polícia nacional, o chefe da agência antidrogas, o promotor de uma região ou, mesmo no nível federal, numerosos governadores, todos foram desmascarados como criminosos. Diretamente envolvidos no tráfico de drogas, o que, por sua vez, significa que eles estavam envolvidos no assassinato em massa de pessoas.

Quando ouvimos pessoas como Trump acusando em seus tweets [a presidenta do México] Claudia Sheinbaum de ter um governo em conluio com os cartéis, isso é pegar uma situação tortuosa e complicada e ser simplista. Ela estava certa em dizer que isso não é verdade. Mas também é verdade, e isso é difícil para o México, que essa é a imagem que o México apresentou ao mundo: que há corrupção suficiente lá para parecer que partes do Estado estão em conluio com organizações criminosas. E que o governo nacional não mostrou capacidade para lidar com essa situação. O número absoluto de pessoas que são mortas, as desaparecidas, os jornalistas que são assassinados… é óbvio que há um problema real. Isso é Estado de Direito e esse é provavelmente o principal problema do México.

E se esse é o caso no México, é exacerbado pelo fato de fazer fronteira com os Estados Unidos. E, portanto, viver ao lado de um país que o subjuga economicamente e que criou o mercado para as drogas que o México fornece, por sua vez, suprindo as armas que são usadas para matar pessoas ali. Os Estados Unidos são uma grande parte do problema também. Podem ter, internamente, até agora, um melhor Estado de Direito, mas acho que nos últimos dez anos todos nós podemos começar a questionar o grau em que a lei nos Estados Unidos é justa. Não é. Vemos repetidamente decisões judiciais arbitrárias. Vemos essa instrumentalização do sistema de justiça, do FBI, por Trump. Vemos juízes racistas. Bem, estamos vendo um colapso do Estado de Direito nos Estados Unidos, é o que também estamos testemunhando, e isso é profundamente preocupante, considerando sua influência na região e no mundo.

Mas o Estado de Direito é algo que todos os países da América Latina, a maioria dos quais estava em ditaduras há apenas quatro décadas, tiveram que lutar para implementar. E a maioria deles fez isso, apesar de tudo. Mas, principalmente, de forma fragmentada. Há poucos países na América Latina que criaram forças policiais e Judiciários que são politicamente neutros e incorruptíveis. Então, essa é a grande diferença entre a região e, digamos, a Escandinávia. Que eu sempre uso, eu puxo aqui porque, claro, acho que para a maioria de nós, a região da Escandinávia, que também tem seus problemas, é de alguma forma o tipo de exemplo brilhante de como a sociedade civil funciona. E se você olhar de perto para eles, seja Dinamarca, Suécia, Noruega, acho que o que você está olhando ali é um Estado de Direito bastante sólido. E é isso que não temos nas Américas. Então, este é o Santo Graal. Ainda é o Santo Graal para a região. Não importa se você é mais próspero e criou uma classe média, se você tem pessoas com cartões de crédito e carros que agora podem sair de férias. Você não pode estar seguro em seu próprio país se não pode confiar nos juízes se for preso, porque pode suborná-los ou outra pessoa pode. Se você não pode confiar na polícia, por ser assassina ou parte do crime organizado, você não tem nada. O Estado de Direito é o ingrediente essencial para a democracia e, sem ele, você está condenado.

Você acabou me lembrando da famosa frase do caudilho mexicano Porfírio Diaz: “Pobre México, tão longe de Deus, tão perto dos Estados Unidos”.
JLA –
Exatamente, muito verdadeira.

Ainda sobre o tema da violência, como você sabe, em 2022, o repórter inglês Dom Phillips e o indigenista Bruno Pereira foram assassinados no Vale do Javari. Ambos eram experientes e foram emboscados mesmo assim. O que você faz para se proteger nos lugares perigosos em que trabalha?
JLA –
Os assassinatos de Bruno e Dom foram especialmente dolorosos. Foram um golpe profundo para todos os que os conheciam e, para quem se importa com a Amazônia, seu meio ambiente, seus povos indígenas. Bruno era um homem experiente e conhecia bem a área do Javari; Dom também já havia estado lá antes. Dito isso, eles talvez não soubessem como os criminosos armados da área se incomodaram com sua presença e, em retrospecto, poderiam ter viajado com mais pessoas da região, talvez em um segundo barco, como uma espécie de segurança para sua travessia final e trágica do rio. Não é garantia, mas viajar em maior número em áreas remotas pode dissuadir até os piores matadores. Mas não quero que pareça que estou criticando Bruno e Dom pelo que aconteceu a eles. Essa não é minha intenção e sou sensível aos sentimentos das viúvas, famílias e amigos dos dois. É possível que Bruno e Dom tenham recebido algum tipo de garantia de que estavam seguros. Afinal, foram atacados e mortos em plena luz do dia. Às vezes, não é culpa de ninguém, exceto dos próprios assassinos. Não há aviso prévio, coisas ruins simplesmente acontecem e assassinatos como os de Dom e Bruno servem como um alerta.

[Nota do repórter: Jon enviou um e-mail posteriormente, preocupado em enfatizar que não criticava as ações de Bruno e Dom nos eventos que levaram às suas mortes]

Manter-se seguro — saber como — é algo que você carrega consigo intuitivamente ou não. Ter algum “radar ou antena” para diversas situações sociais e ambientes estranhos potencialmente hostis ajuda bastante. Mas muito disso pode ser aprendido por meio da experiência: você sobrevive a alguns sustos e aprende rapidamente como evitar que situações semelhantes ocorram no futuro. Às vezes, é muito simples: se você está em uma região rural em uma zona de guerra, por exemplo, e você dirige por um trecho de estrada onde não vê pessoas — fazendo o que os camponeses e agricultores geralmente fazem ao ar livre — carregando água, lenha, cozinhando ou trabalhando nos campos e nos povoados, na beira da estrada, então é altamente provável que você esteja em perigo. Aprendi isso na América Central, no início da minha carreira.

Um episódio ocorreu em El Salvador. Um dia, no interior, eu estava dirigindo em uma zona disputada e notei uma ausência estranha de pessoas depois que passei por um bloqueio do exército. Depois de cerca de um quilômetro, alarmes internos começaram a disparar. Vendo um camponês idoso na beira da estrada, parei e perguntei por que não havia ninguém por perto. “A estrada está minada, senhor”, disse, simplesmente. Ele apontou por onde eu tinha vindo. “Está minado por todo o caminho desde o bloqueio” — e então, virando e apontando na direção a que eu me dirigia — “E tudo por aí também.” Dei a volta no meu veículo e lentamente, tensamente, fiz o caminho de volta por onde eu tinha vindo. Cheguei ao bloqueio do exército sem acionar nenhuma mina. Mas enquanto eu passava pelos soldados ali, me olhando de soslaio, percebi que eles sabiam muito bem o que estavam fazendo, eles tentaram facilitar minha morte. Provavelmente, presumiram que eu estava de alguma forma associado aos guerrilheiros. Assim, ter conhecimento do terreno que você atravessa é fundamental para se manter vivo. Também falar a língua local, compreender as sutilezas da linguagem corporal e os sinais não verbais que as pessoas transmitem umas às outras em tais áreas são todas formas de sentir o risco e evitar o perigo. Todas essas coisas precisam ser aprendidas para se manter seguro.

Voltando à América Latina, tendo testemunhado as ações dos EUA na região desde a década de 1980, e levando em conta as ameaças de Trump quanto à retomada do Canal do Panamá, bombardeios de territórios mexicanos etc., você acha que um intervencionismo desbragado está de volta (em contraste a formas mais sutis de mudança de regime que nunca deixaram de ocorrer)?
JLA –
Sim, acho que sim. Claramente, estamos vendo um Trump que tem uma percepção simplista do mundo e uma ambição desenfreada por seu próprio poder. Tínhamos ouvido ele falar sobre o Canal do Panamá e até mesmo sobre a Groenlândia antes, mas, você sabe, naquele tom de brincadeira, pensamos, bem, é apenas retórica de campanha. E, então, eis que o tema estava em seu discurso de posse, mencionando o Panamá seis vezes. Ele dobrou a aposta nessa ideia de expansão territorial, que ele também mencionou em seu discurso, e do “destino manifesto”. Ele vê o Canadá e diz: “Nós deveríamos pegar isso. Groenlândia? Deveria ser nossa. Putin tem a Passagem Noroeste [no Círculo Polar Ártico], temos que ter a Groenlândia. Além do mais, provavelmente, há minérios e petróleo ali”.

Trump é um racista, um supremacista branco. Ele é como um líder de facção invadindo territórios. Então ele olha para o Panamá e diz: “Sim, esse é um ponto de estrangulamento. [Vladimir] Putin está fazendo isso, ele está agarrando a Ucrânia. Ele está fazendo seu aprofundamento estratégico em todos aqueles ex-países soviéticos. Xi [Jinping] ali vai tomar Taiwan. Ele não disse isso, mas é o que vai acontecer. Eles estão naturalmente controlando todos aqueles países e, se não estiverem fazendo isso abertamente, em breve o farão. É claramente o território deles. Este é o nosso, temos que ser como eles. Temos que flexionar nossos músculos. Todo mundo está se aproveitando de nós. Fomos bonzinhos por muito tempo”.

A propósito, a Agência Bloomberg publicou uma pesquisa recente mostrando apoio dos latino-americanos ao uso da força militar pelos EUA contra Maduro e também ataques militares a cartéis de drogas.
JLA –
Sim, eu sabia que isso aconteceria. O fato é que a ideia de que os estados sucumbiram às organizações criminosas é uma percepção real por aí. Insegurança é um fator enorme nas mentes das pessoas. Você se lembra quando Bolsonaro ganhou o cargo em 2018? No ano anterior, eu me lembro, durante a campanha, foi publicado que 67.000 brasileiros tinham sido mortos, homicídios. Era uma taxa muito acima de qualquer período anterior. E o brasileiro médio estava pensando que eles viviam em uma sociedade insegura. E então veio Bolsonaro com sua abordagem de Dirty Harry, “eu vou resolver”. E as pessoas responderam a isso. Essa não foi a única razão que o elegeu, claro, mas foi uma das razões principais. E eu acho que nós temos que ser capazes de identificar problemas que são genuínos e não atendidos nas sociedades, não atendidos pela democracia liberal, pois eles serão explorados e formarão o eleitorado de populistas de direita e de autoritários.

Eu me lembro de pensar isso quando todos aqueles imigrantes afluíram para a Europa em 2015. Eu tive um verdadeiro sentimento de derrota, porque era talvez um pressentimento do que estava por vir. E foi exatamente o que aconteceu. Os sentimentos raciais subjacentes, medos e ressentimentos da Europa Ocidental reagiram a essa “invasão”, essa perda de controle, em um tempo em que o terrorismo islâmico estava no auge com o ISIS. E nós vimos um país após o outro reagir com retórica crescentemente de direita, sentimento anti-imigração, que teve um eco enorme na população. Alguns países começaram a construir cercas. Os britânicos votaram pelo Brexit, subiram as pontes levadiças. E isso se intensificou. O mesmo é verdade nos Estados Unidos. Eu me lembro de Trump citando o que estava acontecendo na Europa para seus próprios propósitos, comparando a onda de pessoas vinda do Sul ao que estava acontecendo no Leste. E meramente papagaiar expressões liberais de empatia e compaixão, como muitas pessoas fizeram para esses refugiados ou imigrantes, não iria resolver o problema político, e não resolveu, o tornou pior.

Havia até mesmo pessoas, eu me lembro, que argumentaram que a Europa deveria permitir a entrada de qualquer um que quisesse vir, o que francamente é insustentável. E pelo mesmo motivo, quaisquer que sejam os pecados do passado, nos Estados Unidos, é insustentável deixá-los entrar. O que você vai fazer é criar uma reação violenta, uma reação racial, nesses países. Você está “tapando el sol con un dedo”, não está lidando com a realidade. E eu temo que nossos políticos no centro e na esquerda sejam incapazes de compreender e lidar com este assunto muito sensível. Migração é um problema. E ser capaz de chamar isso de problema sem parecer tomar o mesmo lado que os Donald Trumps ou Le Pens deste mundo não é fácil. Mas nós precisávamos de pessoas para fazer isso. E o fato de que não se fez isso adequadamente, sensivelmente, e vigorosamente nos trouxe para a situação em que nós estamos. Onde, em breve, bem, nós já estamos vendo isso nos Estados Unidos, em breve, veremos isso na Europa, eu tenho certeza, veremos expulsões em massa.

Ainda sobre o tema do Estado de Direito, democracias liberais. No final de janeiro, no Hay Festival, na Colômbia, você debateu modelos democráticos, suas limitações etc. Não lhe parece que as democracias, mesmo falhas, como sabemos, têm levando a culpa que deveria ser atribuída a um sistema econômico que é insustentável? Afinal, muita da pressão sobre esses modelos é causada por demandas e conflitos irreconciliáveis do capitalismo tardio. O jornalista George Monbiot, por exemplo, tratou disso em um artigo, e mais tarde um livro, falando sobre a ‘doutrina invisível‘, o neoliberalismo, que é apresentado como um fato da natureza, escapando assim de ser responsabilizado por seus efeitos.
JLA –
Eu concordo. Você acabou de tirar as palavras da minha boca. Eu concordo com George Monbiot e com sua paráfrase. Absolutamente. Eu acho que por tempo demais, nós na, vamos chamar de sociedade liberal, temos seguido adiante com forças de mercado que têm, no espaço de um período muito curto de tempo, realmente reestruturado nossos países, especialmente nos últimos 50 anos, com a cultura do crédito, com a disponibilidade de bens materiais baratos, a destruição dos sindicatos, praticamente em todo lugar, a dispersão do trabalho para um trabalho barato, quase escravo, na Ásia e em outros países, a fim de que nós tenhamos esses bens materiais. O que criou um tipo de sociedade de consumo, criou a ascensão de duas, talvez três gerações de consumidores em vez de cidadãos, pessoas mais e mais preocupadas com seu bem-estar material. E nós agora vemos isso tomando uma nova forma com as mídias sociais e a cultura do entretenimento. As pessoas estão, ao mesmo tempo, aqui e não aqui, estão assistindo Netflix, estão em seus telefones oito horas por dia, ou seja lá o que for, e elas estão primariamente preocupadas com seus próprios sentimentos de bem-estar. Eu acho que este tipo de abordagem neoliberal desenfreada para criar confortos de classe média e prover a escada para fora da pobreza dentro de democracias está também sendo feita, através do neoliberalismo, em ditaduras. É talvez a própria razão de como se provou ser uma mentira a crença que o Ocidente teve por anos de que a prosperidade, como vista através do tipo de capitalismo que o Ocidente desfrutou, inevitavelmente traria democracia.

Os chineses estão muito melhores materialmente do que eles estavam há 30 anos, mas eles parecem ser como cordeiros seguindo a diktat do partido. Eu sei que há indivíduos, mas em geral eles têm seguido adiante com um sistema ditatorial que continua a governar suas vidas. E nós vemos isso não apenas lá, mas em todo lugar, na Rússia, tipos de sistemas políticos coercitivos que no entanto têm adotado o mesmo tipo de modelo para criar progresso material por meio de futilidades da vida, roupas, televisão, carros, liquidificadores modernos, ou seja lá o que for que as pessoas não tinham 50 anos atrás. E isso por sua vez criou uma sociedade de consumo que não é mais leal a um ideal filosófico, ou até mesmo de Estado, mas crescentemente leal a esta ideia de plutocracias transnacionais que controlam aspectos enormes de nossas vidas, quer seja o mundo de Musk, ou o mundo de [Jeff] Bezos, ou [Mark] Zuckerberg, ou o mundo de Peter Thiel [cofundador do PayPal e Palantir]. E essas são agora as novas e maiores ameaças que surgem do modelo neoliberal, essa acumulação de riqueza por alguns poucos. E mais do que tudo, essas novas plutocracias, eu penso, representam a maior ameaça que podemos ver, tanto ao meio ambiente, ao futuro do planeta, quanto à ideia, agora cada vez mais antiquada, de democracias nacionais soberanas. Porque essas plutocracias transcendem fronteiras nacionais, elas podem afetar populações em outros países, e pessoas como Elon Musk sentem que eles têm o direito não apenas de possuir uma plataforma que é transnacional, mas de tentar afetar e ditar os destinos políticos de outros países.

Falando sobre os EUA. Tendo em vista as primeiras ações de Trump, o título do seu artigo sobre Milei (‘Javier Milei Wages War on Argentina’s Government’), adaptando-se, poderia servir para lá também, não? O que você espera deste segundo mandato e dessa eminência (não tão) parda: Musk?
JLA –
Absolutamente, um inimigo do Estado, você quer dizer? É claro que Trump e as pessoas com ele, especialmente Musk, que parece ser quase como um copresidente, estão determinados a destruir a ordem liberal e o governo federal, como tem existido, digamos, desde o tempo do [presidente de 1933 a 1945, Franklin Delano] Roosevelt. Nós estamos testemunhando um esforço para transformar os Estados Unidos de uma maneira dramática, em que o Estado será efetivamente saqueado e privatizado em uma escala que, bem, nós estamos apenas começando a ver isso. Os Estados Unidos vão erguer a cabeça e mostrar sua face mais feia, como uma nação imperial apenas preocupada com seus próprios interesses, e talvez dispensando todas as formas benevolentes de ajuda ou soft power ao redor do mundo, sob a premissa de que precisa se defender e se restaurar como um tipo de poder puro abençoado por Deus, uma nação abençoada por Deus.

Se nós tomarmos todas essas coisas que nós estamos vendo nas primeiras três semanas como exemplos do esforço de Donald Trump, eles são, na verdade, de restaurar os Estados Unidos para aquele momento de “destino manifesto”, em que este tipo de quase fervor evangélico, imperialismo civilizacional, permitiram aos Estados Unidos fazer o que fizeram em meados do século 19, destruir povos inteiros apenas para criar um tipo de terra natal branca no território selvagem americano. Nós estamos realmente encrencados, porque isso parece ser como Trump pensa. Ele é um supremacista branco. Quer seja em piadas ou coisas que ele tem dito ao longo dos anos, nós sabemos que ele enxerga as pessoas de outras etnias e credos como um racista. Se ele tivesse vivido e ganhado poder no século 19, ele teria sido um eugenista. Se ele tivesse estado no poder nos anos 1930, ele teria se alinhado a Hitler. Sem dúvida.

Aliás, esse tema do ‘destino manifesto’ e do território é o mesmo lebensraum do nazismo [espaço vital, conceito de expansionismo territorial do final do século 19, que foi utilizado por Hitler].
JLA –
Sim, sim, sim. Acho que é exatamente isso que ele vê, e ele acha que essa é uma oportunidade para isso. E parece ser isso o que ele está fazendo. Não acho que nenhum de nós esperava isso, mas o mero fato de Trump ter sido reeleito, ou ter sido eleito em primeiro lugar, foi o primeiro sintoma, a primeira prova de que a América estava em algum tipo de declínio sério. Trump tem uma abordagem muito primária, quase animalesca, do poder e do exercício do poder. E lançou a América e, por extensão, o mundo, em um estado de limbo caótico no qual ele espera obter lucro. Ele quebrou todas as regras. O que é interessante sobre esses fenômenos é que, em certo sentido, ele e as pessoas como ele, os Mileis, os outros, são os novos revolucionários. Estamos testemunhando o fim de um arco da história que veio da esquerda, começando com a Revolução Francesa, e efetivamente morreu com a Revolução Cubana. Porque a Revolução Cubana está indiscutivelmente morta. E os outros regimes de esquerda, por quaisquer razões, não são mais bem-sucedidos. Ninguém vai para as montanhas pegar em armas para lutar pelo novo mundo, pelo novo homem.

O capitalismo venceu a Guerra Fria e, 30 anos após o fim dela, vemos a ascensão do capitalismo transacional brutal, exemplificado por Donald Trump, em que as regras éticas são jogadas fora. Ele se livrou das leis contra o suborno de funcionários estrangeiros, ele está perdoando criminosos, ele está lucrando enquanto está na presidência. É uma ganância sem paralelo, descarada, que agora está no poder nos Estados Unidos. Essa é talvez a extensão lógica do capitalismo desenfreado. Acho que é o que estamos vendo aqui, em vez de um tipo de capitalismo restrito, mais humanista, que incorporou aspectos do socialismo para cuidar dos mais necessitados, mantendo a ideia filosófica de um bem comum e, portanto, criar uma espécie de social-democracia. Novamente, como pudemos ver na Escandinávia. O que estamos vendo agora são os Estados Unidos de 1850, em que ainda havia escravidão, havia destino manifesto, as pessoas se moviam por esses territórios selvagens, viam os indígenas e os abatiam, pegavam o que podiam. É a isso que estamos voltando.

No Brasil e nos EUA parece haver uma confiança exagerada no poder dos freios e contrapesos das instituições para lidar com elementos que têm justamente a intenção de subvertê-las. A ideia que o Estado de Direito, direitos adquiridos, a própria democracia, são estágios irreversíveis. Mas em pleno século 21, quase tivemos um golpe de estado no Brasil. E, nos EUA, decisões recentes da Suprema Corte revogando direitos (como aborto e ações afirmativas) são exemplos. Um professor de Direito Público e Teoria do Direito da Universidade de Leeds, Paolo Sandro, comentou estar surpreso pela pouca resiliência institucional que a democracia dos EUA está mostrando. Você acha que as instituições, tanto de Estado quanto da sociedade civil, estão equipadas para lidar com a extrema-direita?
JLA –
Não, eu não acho. É claro que elas não estão, ou nós não teríamos Donald Trump na Casa Branca. O fato de que ele foi eleito, e eu estou repetindo a mim mesmo aqui, pela primeira vez e reeleito uma segunda vez, apesar de tudo, mostra que há uma crise real nos Estados Unidos, em termos de suas instituições, da politização e uso do Judiciário como arma, da Suprema Corte, mais flagrantemente. E nós temos visto isso não apenas com Roe versus Wade [direito ao aborto] mas também em termos do lobby das armas contra partes da sociedade civil que buscam uma restrição no uso, no fluxo livre de armas de assalto, apesar dos incidentes hediondos de assassinatos de crianças, repetidamente. Isso, para mim, é o exemplo mais claro de que os Estados Unidos são uma sociedade doente…. E visto da Europa, onde eu vivo, é apenas a barbárie.

Como pode qualquer sociedade não querer buscar banir armas após um bando de crianças ser assassinado? E nós não apenas temos visto isso, como também a Suprema Corte apoiar o lobby de armas. Em um de seus casos recentes, ela retirou leis restritivas quanto ao controle de armas no Estado de Nova York, liberando a possibilidade de que mais pessoas possam ter armas. E uma outra corte federal decidiu contra uma restrição para jovens terem armas. É uma coisa inacreditável, é moralmente insustentável, inacreditável. De onde isso está vindo? Para mim, é um tipo de loucura. É um tipo de transtorno moral em um nível profundo. Eu me sinto extremamente alienado dessa parte da sociedade, a considero, francamente, extremamente adversária. Filosoficamente, eu diria que as pessoas que estão fazendo esse tipo de escolhas são de fato minhas inimigas. Não são meus conterrâneos americanos, são inimigos. E quanto mais os Estados Unidos tropeçam por essa estrada em direção ao autoritarismo fétido, corrupto, sem lei, mais eu vejo as pessoas que apoiam essa parte da sociedade como meus inimigos.

No Brasil, o presidente da Câmara minimizou publicamente os crimes de 8 de janeiro, em Brasília, e ainda sugeriu discutir o abrandamento de uma lei que torna políticos inelegíveis, o que favoreceria Bolsonaro. Ou seja, o líder do Legislativo parece querer que um investigado por tentativa de golpe de Estado volte a jogar pelas regras que ele tentou abolir…
JLA –
Olha, tudo que eles estão fazendo ali é imitar o que tem sido feito nos Estados Unidos com Trump. A coisa chocante é que até agora, de fato, o Judiciário do Brasil, sua polícia federal, seu Supremo Tribunal Federal têm se mantido firmes. Eles têm mostrado uma desenvoltura e uma habilidade notáveis e admiráveis de reter sua autonomia em face de uma tentativa de miná-los e politizá-los pelo Executivo e outras forças. E isso se destaca em contraste gritante ao que aconteceu nos Estados Unidos, onde Trump foi efetivamente solto. Você sabe, Bolsonaro estava vagando por shoppings em Orlando, de chinelos e bermuda, quando o ataque aconteceu no Brasil. Mas era óbvio que ele estava apenas se retirando da cena do crime. Óbvio. Enquanto Trump, nós todos vimos com um microfone, dizendo às pessoas para irem para o prédio do Capitólio. E não mandou as forças para pará-los quando se tornou algo violento. Então, foi ainda mais gritante por conta da obviedade daquilo. Agora ele está fazendo com que as pessoas que o investigaram, e aos revoltosos investigados e punidos, serem expulsos de seus empregos. Isso ainda não aconteceu no Brasil e eu espero que não chegue a isso. Eu volto ao ponto que eu estava fazendo antes sobre democracia: ela não funciona se não há Estado de Direito. E portanto, a democracia dos Estados Unidos está em perigo iminente de falha ou declínio. E a do Brasil está ameaçada e tem sido ameaçada por algum tempo, e muito inspirado pelo exemplo trumpista. Ficou claro desde o começo que Bolsonaro pegou a dica e imitou o que Trump fez abertamente.

Ainda sobre instituições, temos de falar do papel da imprensa. No Brasil, ela parece subestimar ameaças à democracia, até mesmo legitimando a extrema-direita – termo, aliás, raramente usado para nomear figuras dessa natureza. A Folha de S.Paulo, por exemplo, no fim do ano passado, publicou artigo de opinião do ex-presidente Jair Bolsonaro, convenientemente chamado de ‘Aceitem a Democracia‘, elogiando a vitória de Trump. Deram espaço para um político com direitos cassados e investigado por tentativa de supressão do Estado de Direito. Por que você acha que o jornalismo está cometendo erros tão perigosos, se for esse o caso?
JLA –
Bem, nós vimos isso. É preocupante essa tendência. Nós vimos isso da primeira vez que Trump foi eleito. O tempo no ar que ele recebeu, particularmente pela televisão, e não apenas Fox, mas pelas outras redes e a CNN. Cada vez que Trump abria a boca eles davam a ele tempo no ar. Não foi o mesmo para Hillary Clinton. E nós vimos suas audiências subirem e suas circulações aumentarem quando ele estava no cargo. E agora que ele está de volta, e mesmo antes de ele voltar, nós vimos a maneira como os titãs da mídia começaram a sucumbir diante dele, a se curvar a ele. Bezos, com The Washington Post, removendo o editorial de Kamala Harris. O mesmo com Patrick Soon-Shiong, proprietário coreano do The LA Times. Nós vimos um abrandamento na CNN. Nós os vimos remover Jim Acosta [âncora da CNN, que renunciou após a reeleição de Trump], que era a figura mais direta, um ponto crítico durante o primeiro mandato de Trump. Eles o mudaram das 10 da manhã para o horário da meia-noite. Ele se demitiu. Univision, o principal canal hispânico nos Estados Unidos, basicamente tornou a vida insustentável para [o jornalista] Jorge Ramos, sua estrela, é claro, mas também visto como uma figura franca, enredada com Trump. Ele se foi, também. Então nós vimos um desmoronamento, e isso aconteceu na mídia, aconteceu na política, no mundo corporativo e entre esses grandes techbros que administram as plataformas, Zuckerberg, todos eles. E Musk, liderados por Musk, que não apenas sucumbiu, mas abraçou e se juntou a ele.

E então nós estamos em um cenário muito novo agora, onde toda uma gama de forças sociais e econômicas se aliaram a Trump, talvez por medo de que ele os prejudicasse, porque ele é muito vingativo, é provavelmente parte disso para muitos deles. E abertamente, assim como vimos os republicanos fazerem antes, eles o haviam criticado anteriormente e então se juntaram a ele. Nós estamos agora vendo isso acontecer por toda a sociedade. É extraordinário. Como você pode ir de chamá-lo de Hitler, para se juntar a ele, como seu vice-presidente? Olhe para J.D. Vance! E por todo o meio social. Então eu não estou surpreso de ver isso acontecer em outros lugares, porque fornece um modelo para todo mundo.

A questão palestina não é outro fracasso vergonhoso da mídia? Scholars como Omer Bartov e Amos Goldberg, por exemplo, apontaram não apenas para limpeza étnica e crimes de guerra, mas genocídio em Gaza. A cobertura da mídia, no entanto, carecia desses termos…
JLA –
Com certeza. Sim, é. Por um lado, a imprensa realmente não pôde cobrir. As pessoas têm essa ideia de que você pode cobrir o que está acontecendo lá. Bom, você não pode. Você pode ir para Israel e reportar de fora de Gaza, mas você não pode reportar de dentro de Gaza, por uma razão: os israelenses não vão deixar você entrar e nem o Hamas. Então há um tipo de cobertura enviesada, não é como na Síria, onde eu passei parte de dezembro, onde, por mais difícil que seja, você pode ir lá, ou o Afeganistão, ou qualquer outro lugar, Ucrânia… Mas sim, é um fracasso. E agora você tem Trump falando em uma Riviera de Gaza, a ideia de que Gaza poderia ser vista como um negócio imobiliário. Isso foi mencionado pela primeira vez, e eu tenho certeza que não é coincidência, pelo genro de Trump, Jared Kushner, em algum momento no ano passado. É chocante o fato de ele estar agora dobrando a aposta nessa ideia de expulsão em massa de palestinos, usando esse tipo de influência de valentão da América para pressionar o Egito e a Jordânia a receberem essas pessoas, e claramente dando sinal verde para [Benjamin] Netanyahu fazer o que quiser. Mas eu não vi nenhuma manchete nos jornais americanos chamando essa proposta de limpeza étnica, que é o que é. E é realmente sério, sim. E eu temo que, embora você possa ter uma cobertura crítica no The New York Times com esse tipo de questionamento, haja um tipo de adaptação acontecendo, uma normalização acontecendo ao expansionismo desenfreado de Trump.

E nós não estamos vendo, não há manifestações nas ruas ainda. É assustador. Eu me lembro de dizer isso para pessoas, muito deles estadunidenses. Eu apontava isso sobre seu primeiro mandato, e as mulheres, em particular disseram: “Isso não é verdade. Nós tivemos a marcha de um milhão de mulheres mais ou menos na primeira semana de sua presidência”. Mas foi isso. Eu disse, “Sim, e depois o quê?” Foi só isso. Nós temos um tipo de resistência performática que acontece principalmente nas mídias sociais. É virtual, não real. A menos que você esteja realmente lá fora fazendo isso, vendo isso, não é real. Nós vimos as coisas começarem depois de George Floyd [homem negro assassinado por um policial branco em 2020]. Mas essas coisas não se mantiveram, e agora nós os temos de volta. São tempos assustadores, e minha impressão é que isso tem que ser enfrentado com resistência cívica massiva. Resistência cívica. Isso está em um nível tão exagerado que tem que ser enfrentado com resposta igual pela sociedade civil. Mas, eles estão em choque ou assistindo Netflix? Eu não sei.

Há observadores da mídia dizendo que o governo Trump deveria ter uma cobertura como as dos desastres naturais, ou ataques terroristas, não medindo palavras, nomeando as coisas como são.
JLA –
Sim, sim, sim, exatamente. Nós vimos isso na MSNBC, CNNe The New York Times. Eles começaram a dizer, solenemente, “O presidente Trump mentiu hoje quando disse isso e isso”. Essa foi uma decisão editorial que na época eu considerei, primeiro de tudo, notável, e ela continua em certa medida, mas isso em si não parece ter alterado um tipo de padrão geral de comportamento. Em outras palavras, criou um novo normal. Não afeta Trump, e a mídia não foi além disso, por medo de perder, eu suponho, uma base de consumidores. Nós estamos crescentemente vendo a mídia ser guiada por conteúdo editorial aparentemente direcionado por algoritmos.

Então há uma nova tendência neste mundo, onde é difícil para a mídia sobreviver, em que os mais bem-sucedidos sustentam e ganham parcelas de audiência dando ao público o que ele quer. E, você sabe, “sexo vende”, obviamente. The New York Times teve pelo menos duas histórias sobre estrelas pornô em sua capa nos últimos meses, também sobre mulheres solitárias na Ucrânia, e eu pensei, este é The New York Times que eu conhecia? Quer dizer, todo mundo vai ler essas histórias porque, sim, as pessoas querem ler sobre sexo. Mas meu ponto é, e isso é meramente uma observação, é esse o preço para uma empresa de notícias sobreviver? Uau, nós realmente estamos em águas desconhecidas, porque se é isso que as pessoas querem ler, e você está dando isso a elas, em que patamar você decide que também vai dar a elas as notícias importantes, diretas, notícias sérias com as quais a velha Gray Lady [apelido do NYT] construiu sua reputação? Ou você vai apenas dar a eles mais e mais de Mia Khalifa, ou seja qual for o perfil?

Voltando a suas experiências pessoais, Jon, o que você considera um erro que você cometeu? Uma pergunta que você não fez ou uma que foi longe demais.
JLA –
Eu tenho certeza que eu cometi muitos. Eu provavelmente cometo erros todos os dias, mas não é algo que eu fique pensando. Eu penso sobre as histórias que eu gostaria de fazer, mas que talvez tenha me atrapalhado, e não as consegui porque errei em não fazer isso ou aquilo na hora certa. Há momentos em que eu me encontrei com lideranças e não fiz as perguntas que eu desejava ter feito porque a sessão terminou cedo, e eu estava pensando “se eu for mais diplomático eu posso conseguir uma segunda entrevista”. Você sabe, há esses tipos de erros. Mas um tipo de erro geral, filosófico, talvez, ou ético, eu não acho. Eu penso que há momentos em que você faz um julgamento sobre um sistema político, talvez, ou uma personalidade que você pensa… você atribui virtudes a eles que mais tarde descobre não estarem lá. Eu não sei se é um erro, mas eu me lembro quando [Barack] Obama e Raul Castro fizeram seu anúncio de 2014 [retomando as relações entre os EUA e Cuba] e então embarcaram em um tipo de abertura de dois anos. Eu me lembro de ser atraído para essa história como uma mariposa para a luz. Quer dizer, eu amei essa abertura, estava muito animado com isso, muito a favor disso, era uma coisa fantástica.

Na época, eu estava me sentindo extremamente deprimido e preocupado com o terrorismo islâmico, já que eu estive muito no Oriente Médio, amigos meus foram assassinados. E, para mim, essa era uma oportunidade de meio que pular para uma história que era essencialmente positiva, um conflito que estava sendo resolvido em vez de perpetuado. Tanto em Cuba como também quanto ao acordo de paz das FARC na Colômbia. Eu ia e voltava entre os dois temas. Para mim, este foi um período maravilhoso de dois anos ou mais, talvez três, e então acabou. O acordo com as FARC meio que continuou, mas a Colômbia não é um lugar feliz hoje, há talvez tantas pessoas combatendo de novo como havia antes. E Cuba não era algo sustentável e não era sustentável tanto por causa dos norte-americanos, como também por conta dos cubanos. Os conservadores dentro do Partido Comunista encerraram sua cooperação com os Estados Unidos. Depois, Trump entrou em cena e piorou tudo. Então, talvez, eu tenha sido um pouco ingênuo em pensar que essa abertura era sustentável, e eu fiquei muito desapontado que não foi. Isso é mais uma reflexão pessoal, é claro, eu não tenho certeza se isso se qualifica como um erro, eu acho que eu estava esperançoso. Mas eu não avaliei, de fato, minhas reportagens para ver se elas estão imbuídas de algum tipo de determinismo ingênuo.

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 25/02/2025