Democracias em Suspenso: Estados Unidos (06/01/2021) e Brasil (08/01/2023) diante do Autoritarismo Contemporâneo

por Carlos Eduardo Araújo

A cena que ora se desenrola nos autos do processo relativo aos atos golpistas do 8 de janeiro de 2023, em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal, sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes, na Primeira Turma da Corte, reveste-se de uma magnitude simbólica e histórica inigualável. Em julgamento não estão apenas determinados indivíduos ou condutas específicas perpetradas naquela jornada trágica; o que se submete ao crivo da mais alta instância do Poder Judiciário brasileiro é, em verdade, um longo e conturbado capítulo da história nacional: o papel desempenhado pelas Forças Armadas ao longo da formação política do país e sua recorrente associação às forças reacionárias, autoritárias e antidemocráticas.

A relevância deste processo transcende, portanto, a esfera penal individual, alcançando o plano da memória institucional e da autorreflexão democrática. Ao que tudo indica, está em curso uma rara oportunidade histórica para que o Estado brasileiro — por meio de um de seus Poderes constituídos — se confronte com os fantasmas de seu passado autoritário, revisitando, com o devido rigor, o protagonismo das instituições militares nos sucessivos episódios de ruptura constitucional que marcaram a vida republicana, da República da Espada aos anos de chumbo da ditadura civil-militar.

Ao assumir, de forma explícita, que os acontecimentos de 8 de janeiro não foram um episódio isolado, mas a culminância de um processo de corrosão institucional estimulado por setores que sempre resistiram à plena institucionalização democrática, o Supremo Tribunal Federal afirma seu papel não apenas como guardião da Constituição, mas como intérprete da história viva do país. E, ao fazê-lo, desafia a sociedade brasileira a romper o ciclo de esquecimento e de complacência que por vezes naturaliza a tutela militar sobre a vida civil.

Trata-se, com efeito, de um episódio sem precedentes na longa e atribulada história do Brasil: a cúpula das Forças Armadas — generais de quatro estrelas, figuras outrora intocáveis e insuspeitas — sentada no banco dos réus, não por crime de opinião, mas por tentativa de golpe contra a ordem constitucional. É uma cena que jamais fora testemunhada em mais de cinco séculos de história nacional, nos quais os militares, desde o Segundo Reinado, estiveram recorrentemente associados a rupturas institucionais, em aliança estreita com os interesses das elites dominantes — fossem estas escravocratas, latifundiárias, oligárquicas ou financistas.

A tradição golpista das Forças Armadas no Brasil, longe de ser episódica ou acidental, constitui elemento estrutural de sua formação ideológica. A caserna brasileira sempre se constituiu, com raras exceções, como um dos pilares do conservadorismo político, avessa ao protagonismo popular, impermeável aos valores republicanos mais substantivos, e refratária à ideia de soberania popular que transcenda o formalismo eleitoral. Sua posição histórica — de tutela sobre o poder civil — remonta ao século XIX, consolidando-se com a proclamação da República e perpetuando-se em ciclos de intervenções autoritárias que, por vezes, contaram com respaldo significativo das elites econômicas e da mídia empresarial.

Nesse contexto, assistir, em pleno século XXI, à responsabilização penal desses oficiais-generais diante da Suprema Corte — por atos que atentaram contra a ordem democrática — é mais do que um sinal de maturidade institucional: é um ato de justiça histórica, ainda que tardio e limitado. Não se trata de ilusões triunfalistas acerca da perfeição dos Poderes da República, todos eles marcados por contradições e por vínculos profundos com as estruturas de dominação social. Mas sim de reconhecer que, em determinadas circunstâncias, mesmo instituições permeadas por vícios históricos são capazes de exercer um papel republicano.

Há uma ironia dialética nessa conjuntura: os Poderes da República, historicamente aliados ao conservadorismo, tornaram-se, ainda que por cálculo de autopreservação, barreiras contra a barbárie autoritária que ameaçava implodir o pacto constitucional de 1988. O Executivo, o Legislativo e, sobretudo, o Judiciário — mesmo com seus limites e cumplicidades históricas — viram-se, pela força dos fatos, compelidos a adotar uma posição legalista. Não por virtude, mas por necessidade.

Este episódio projeta o Brasil numa posição paradoxal e, em certa medida, insólita: a de vanguarda institucional diante da autoproclamada “maior democracia do mundo”. A comparação com os Estados Unidos, nesse contexto, impõe-se quase como um imperativo analítico. Lá, Donald Trump — figura paradigmática do neofascismo do século XXI — esteve no epicentro de uma tentativa explícita de ruptura da ordem constitucional, insuflando a invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021. Trata-se de um episódio que, em qualquer democracia madura, teria demandado uma resposta institucional célere, firme e pedagógica.

No entanto, o sistema político norte-americano, notoriamente marcado por mecanismos de freios e contrapesos, revelou-se também atravessado por uma leniência seletiva e uma timidez conivente. A despeito da gravidade inegável dos fatos — que atentaram frontalmente contra os fundamentos do Estado de Direito e a própria liturgia republicana —, as instituições estadunidenses até agora mostraram-se incapazes de impor sanções exemplares aos principais mentores e executores da sublevação. A despeito de investigações em curso e processos judiciais em diferentes instâncias, o fato é que os desdobramentos penais e políticos permanecem limitados, quando não ambíguos.

Na nação que, há mais de um século, ostenta para o mundo o papel de bastião universal das liberdades civis e guardiã autoproclamada do ideal democrático, a realidade recente evidencia um inquietante paradoxo histórico: os protagonistas da tentativa de subversão da ordem institucional, perpetrada a olhos vistos, permanecem em grande medida impunes. Entre eles, o próprio Donald Trump — epicentro da inflexão autoritária — não apenas evitou o ostracismo político que, em democracias maduras, seria o corolário natural de sua conduta, como foi, para perplexidade global, reconduzido ao centro da cena política nacional, eleito para um segundo mandato. Sua presença continua a galvanizar uma base social expressiva, reacionária, conservadora, violenta e ideologicamente mobilizada, a qual vê nele não um transgressor da ordem republicana e constitucional, mas um restaurador de um ideal perdido, ainda que às custas do próprio regime democrático.

O retorno triunfal de Donald Trump ao centro da cena política norte-americana — sustentado por uma retórica abertamente antiliberal, hostil às instituições constitucionais e impregnada de acenos autoritários — representa não apenas o aprofundamento da erosão da cultura democrática nos Estados Unidos, mas também o advento de uma inflexão paradigmática no modelo político vigente, que desafia frontalmente os fundamentos do constitucionalismo clássico. O que se vislumbra é a emergência de uma gramática de poder fundada na deslegitimação sistemática dos freios e contrapesos institucionais, na mobilização do ressentimento social como capital político e na naturalização da exceção como método de governo.

Esse cenário torna-se ainda mais grave diante das manifestações populares em curso — particularmente intensas em metrópoles como Los Angeles — que denunciam as deportações em massa promovidas pela administração Trump, marcadas por flagrantes violações de direitos fundamentais e pela corrosão do devido processo legal. Tais práticas, além de atentarem contra os preceitos constitucionais norte-americanos, ferem compromissos internacionais em matéria de direitos humanos, realçando a natureza regressiva do atual projeto político.

As mobilizações em curso, que se ampliam em escala e intensidade, evocam não apenas a possibilidade de um contágio nacional, mas o prenúncio de uma inflexão histórica. O potencial de galvanização de setores secularmente marginalizados — em especial populações negras, latinas e periféricas — sugere a emergência de uma contra-narrativa poderosa, capaz de confrontar as estruturas enrijecidas de opressão racial, social e econômica. O que se desenha, portanto, é mais do que uma sucessão de protestos localizados: trata-se de uma dinâmica que pode aprofundar, de modo explosivo, as já latentes fissuras do tecido social norte-americano.

A analogia com um rastilho de pólvora ultrapassa a dimensão retórica: é expressão literal de um estado de combustão política iminente. A convergência entre desigualdade estrutural, violência policial sistêmica e ausência de canais institucionais legítimos de escuta e reparação configura um cenário propício à deflagração de uma convulsão de grandes proporções. Tal convulsão não se restringiria ao plano doméstico; suas reverberações projetam-se sobre uma ordem internacional já tensionada por instabilidades geopolíticas, pelo avanço de nacionalismos excludentes e pelo esgarçamento das instituições multilaterais que, outrora, mediaram a governança global.

Nesse contexto, a resposta do governo Trump assume contornos particularmente inquietantes. A decisão de mobilizar a Guarda Nacional contra cidadãos norte-americanos — cuja ação se inscreve no legítimo direito de protesto — estabelece um precedente autoritário que rebaixa os parâmetros democráticos e alimenta uma lógica de militarização da esfera pública. Em vez de buscar a mediação institucional e a escuta ativa das demandas populares, optou-se por uma retórica de inimigo interno e por uma praxis repressiva que resgata ecos sombrios do passado: de repressões raciais históricas a estratégias de contenção que sempre recaíram, de modo preferencial, sobre corpos racializados e empobrecidos.

A inflexão autoritária que se delineia, portanto, não é apenas norte-americana. Ela se inscreve em uma lógica mais ampla de regressão democrática no Ocidente, marcada pela erosão das garantias civis, pela criminalização do dissenso e pela ascensão de lideranças que instrumentalizam o medo, o ressentimento e a insegurança para consolidar projetos de poder excludentes. As ruas, nesse cenário, tornam-se o espaço simbólico e concreto onde se trava uma disputa decisiva: entre o fechamento autoritário e a reinvenção democrática.

Neste contexto, os Estados Unidos deixam de ser apenas um caso nacional em crise e passam a encarnar, de forma emblemática, as tensões do presente global: a luta entre autoritarismo e democracia, entre o Estado de Direito e o decisionismo, entre o pluralismo constitucional e o projeto de uma nação homogênea, encerrada em si mesma. A figura de Trump, mais do que um ator político, emerge como sintoma de uma mutação civilizacional em curso — cujo desfecho permanece em aberto, mas cujos sinais demandam vigilância, resistência e lucidez crítica.

O contraste com o Brasil, onde setores importantes do Judiciário e do Ministério Público têm atuado de maneira incisiva contra os atentados golpistas de 8 de janeiro de 2023, revela um curioso deslocamento geopolítico da tutela democrática, sugerindo que, em certos aspectos, a periferia do sistema internacional parece hoje mais disposta a defender a legalidade constitucional do que o seu suposto centro civilizacional.

Nesse aspecto, a resposta institucional brasileira, embora imperfeita, mostra-se mais firme, mais decidida e, ousa-se dizer, mais democrática do que a do seu paradigma hemisférico. Enquanto nos EUA o negacionismo golpista é normalizado, aqui o STF — mesmo sob pressões e ataques virulentos — enfrenta diretamente a elite fardada que pretendia instaurar um regime de exceção. É uma resposta que desafia a tradição da impunidade seletiva e que se inscreve, talvez, como um marco no processo inconcluso de democratização do país.

O simbolismo desse julgamento ultrapassa os limites do jurídico. Ver generais que por décadas se colocaram acima da lei, ungidos por uma aura de impunidade e arrogância institucional, serem interrogados, acusados e, possivelmente, condenados, tem um valor pedagógico e civilizatório inestimável. O que está em jogo é mais do que a responsabilização individual: é a afirmação de que a tutela militar sobre a política — esse espectro que assombra a República desde seu nascedouro — não será mais tolerada com passividade.

É imperativo, portanto, que este processo produza consequências duradouras, que se consolide como paradigma de responsabilização dos que atentam contra a soberania popular. A democracia brasileira, ainda frágil, desigual e excludente, dá neste momento um sinal de vitalidade que merece ser reconhecido — e, mais que isso, aprofundado. Que a justiça que hoje alcança os generais do 8 de janeiro não seja um ponto fora da curva, mas o prenúncio de uma nova etapa histórica em que o monopólio da força não se sobreponha ao primado da lei, e em que nenhuma farda — por mais estrelada que seja — se coloque acima da Constituição.

Carlos Eduardo Araújo – Mestre em Teoria do Direito PUC (MG). Professor das disciplinas: Teoria da Justiça, Introdução ao Estudo do Direito e História do Direito

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Last Update: 21/06/2025