Demência Cívica Antes da Neurológica
por Celso Pinto de Melo
Caráter é destino, já ensinava Heráclito. A revelação recente de que o general Augusto Heleno sofre de Alzheimer produziu, mais do que surpresa, uma reação conhecida: a tentativa de transformar doença em biografia, equívoco em absolvição, decadência em desculpa. Mas nada no percurso público de Heleno autoriza essa leitura complacente. Sua erosão democrática não é recente, nem acidental. É antiga, deliberada e coerente. Não se trata de declínio cognitivo, mas de algo mais profundo: uma demência cívica.
Desde jovem, Heleno alinhou-se à ala mais intransigente das Forças Armadas. Em 1977, no episódio que quase implodiu o próprio regime militar, era ajudante de ordens de Sylvio Frota, símbolo da linha-dura que conspirou contra a abertura conduzida por Ernesto Geisel. Testemunhos históricos e registros da época situam Heleno entre os capitães que cumpriram ordens diretas de mobilização de comandantes do Exército – tentativa abortada quando Geisel chamou os generais ao Planalto e demitiu Frota no mesmo dia. Heleno foi removido de Brasília junto a outros “frotistas”. Nada ali sugere ausência de lucidez; ao contrário, revela o começo de uma coerência ideológica que o acompanharia por décadas.
Essa coerência reapareceu em 2008, quando Heleno, então comandante do Comando Militar da Amazônia, reagiu publicamente contra a homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Diante de plateia fardada, classificou a política indigenista como “caótica” e insinuou que a decisão constitucional ameaçava a soberania nacional. Foi necessário que a Advocacia-Geral da União lembrasse o óbvio: as Forças Armadas não falam pelo governo. A postura de Heleno deixava claro que ele se atribuía um direito de veto político – algo frontalmente incompatível com a ordem constitucional.
Um episódio em 2005 possivelmente alimentou esse ressentimento. Como comandante militar da MINUSTAH – a missão de estabilização da ONU instalada no Haiti após a queda de Jean-Bertrand Aristide – Heleno chefiou a Operação Punho de Ferro, em Cité Soleil. Organizações haitianas e reportagem da Reuters relataram dezenas de mortes civis na ação. O relatório S/2005/631 do secretário-geral da ONU registrou alegações de violações de direitos humanos e a abertura de investigações internas. Segundo relatos divulgados pela TV Cultura e outros veículos, o governo Lula teria sido instado pela ONU a substituí-lo no comando da missão, o que ocorreu dias depois. A reação de Heleno foi de desprezo: atacou entidades e profissionais de direitos humanos, acusando-os de ‘defender bandidos’. Nada ali indica confusão mental – apenas a recusa sistemática a qualquer forma de controle civil ou responsabilização.
Essa mesma recusa moldou seu comportamento durante o governo Bolsonaro. Como ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, Heleno tornou-se o porta-voz mais estridente do bolsonarismo fardado. Deu murros na mesa, chamou Lula de “bandido” e “desonesto”, disse “ter vergonha do que recebia como general”, atacou decisões do Supremo e reiterou, inclusive em 2023, que “bandido não sobe a rampa”. Sua negativa insistente da tortura praticada pela ditadura militar – rejeitando relatórios oficiais e desqualificando sobreviventes e a Comissão Nacional da Verdade – completou o retrato. Não se trata de ignorância, mas de convicção.
A participação do general na trama golpista de 2022–2023, revelada pela Polícia Federal, apenas amarra o fio de sua trajetória. Em reunião ministerial Heleno foi explícito: “Se tiver que virar a mesa, é antes das eleições”. A chamada “minuta do golpe”, encontrada na casa de Anderson Torres, previa a criação de um “gabinete de crise” para gerir o país após a ruptura institucional – e Heleno figurava nominalmente entre os generais que o integrariam. Não houve execução, mas houve articulação. E foi isso que levou à condenação inédita de generais pelo Supremo Tribunal Federal. Em setembro de 2025, Heleno recebeu pena de 21 anos por tentativa de golpe e abolição violenta do Estado democrático de direito.
É nesse contexto que surge a alegação de Alzheimer. No exame de corpo de delito, Heleno declarou ter a doença “desde 2018”. Dias depois, sua defesa corrigiu a data para 2025. O Supremo agora cobra laudos, prontuários e histórico médico para verificar a informação.
Nada disso diminui – ao contrário, exige reconhecer – a gravidade profunda do Alzheimer, enfermidade cruel que corrói memórias, desestrutura famílias e impõe sofrimento íntimo a quem a enfrenta. Do ponto de vista clínico, a doença de Alzheimer pode provocar alterações de personalidade – irritabilidade, desinibição, perda de empatia – sobretudo em fases intermediárias e avançadas. Mas diretrizes da OMS e consensos neurológicos são claros: a enfermidade não cria convicções políticas novas; apenas modula traços pré-existentes. Nenhum diagnóstico assim deveria ser politizado, muito menos convertido em álibi. Por respeito à dor dos pacientes e de seus familiares, não se pode permitir que essa condição sirva ao redesenho de uma biografia política construída ao longo de décadas – e muito antes de qualquer sintoma clínico.
Nada no comportamento público de Heleno entre 2018 e 2022 sugere desorganização cognitiva. Suas falas eram articuladas, seus ataques eram planejados, sua participação em reuniões golpistas era sistemática. A tentativa de colar rótulo neurológico ao que foi opção política é, no mínimo, um insulto à inteligência do país. E, sobretudo, às vítimas reais da demência – que nada têm a ver com a erosão de valores democráticos.
O caso Heleno revela algo mais profundo: a persistência, em parte do estamento militar, da crença na tutela sobre o poder civil. Não se trata de lapsos; trata-se de lealdades. Não é sobre esquecimento; é sobre convicção. E, quando a convicção renuncia à democracia, não há diagnóstico que a explique – apenas história que a revela. Se o caráter é destino, quando o caráter se afasta da República, o destino do país se estreita.
Celso P. de Melo é doutor em Física pela University of California, Santa Barbara, Professor Titular aposentado da UFPE e Pesquisador 1-A do CNPq. Foi Presidente da Sociedade Brasileira de Física (2009–2013), Diretor Científico do CNPq (1999–2002), Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação da UFPE (2003–2006) e Vice-Presidente da SBPC (2005–2007). É Membro Titular da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Pernambucana de Ciências. Recebeu da Presidência da República a Comenda (2002) e a Grã-Cruz (2009) da Ordem Nacional do Mérito Científico, bem como a Comenda da Ordem de Rio Branco (2007).
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