Um estudante de 18 anos salvou o dia dos fotógrafos escalados para cobrir a manifestação em favor da anistia em uma manhã nublada em Copacabana. O imenso cartaz “Sem Anistia”, colado estrategicamente na janela de um prédio nas proximidades de onde se instalou o carro de som do protesto, produziu uma daquelas imagens que valem por mil palavras. E não deixou de ser o resumo do convescote borocoxô na orla carioca. Um levantamento de pesquisadores da USP calculou 18 mil “patriotas” no evento. O Datafolha foi um pouco mais generoso: 30 mil. E a Polícia Militar do Rio de Janeiro provou a falta de apetrechos cognitivos para fazer uma conta básica: chutou 400 mil participantes em um perímetro que caberia, no máximo, 185 mil. O governador fluminense, Cláudio Castro, chefe da PM que não sabe calcular, esteve no palanque, assim como o colega paulista, Tarcísio de Freitas, ainda preso a uma certa fidelidade canina ao seu mentor político, o catarinense, Jorginho Mello, e o mato-grossense, Mauro Mendes. A população da cidade estava mais interessada na final do campeonato estadual entre Flamengo e Fluminense. Estrela do ato, o ex-presidente Jair Bolsonaro foi incapaz de inflamar os fiéis. O senador Magno Malta parecia estar sob efeito de remédios. Tarcísio, vestido com uma camiseta azul da CBF, fez uma média antes de deixar o local e seguir para uma viagem a Londres, onde encontraria investidores estrangeiros.
A eventual aprovação da anistia acabaria no STF
A manifestação pífia talvez não tenha esmorecido as articulações de um projeto de anistia aos envolvidos na tentativa de golpe, mas também não fortaleceu o movimento. A iniciativa voltou ao noticiário em um momento de intensas negociações – e desavenças – entre Executivo, Legislativo e Judiciário. Falta aprovar o orçamento deste ano, o que deveria ter ocorrido no fim de 2024, a reforma ministerial está incompleta e o Supremo Tribunal Federal ameaça barrar mais uma esperteza dos parlamentares, a manutenção, sob outra rubrica, das emendas sem prestação de contas à sociedade. Não está claro se o renascimento da proposta de livrar a cara dos golpistas é um mero exercício de pressão e chantagem do Congresso ou se prospera, de fato, um acordo para salvar os invasores do 8 de Janeiro em uma primeira etapa e os organizadores da tramoia golpista em um instante posterior. Até agora, o STF condenou quase 500 envolvidos na depredação das sedes dos Três Poderes a penas que chegam a 17 anos de prisão. Adendo: vários dos condenados se recusaram a fazer um acordo de não persecução penal, que previa o pagamento de multa, o abandono da presença nas redes sociais por, no mínimo, dois anos e a frequência em um curso sobre democracia. Grande parte preferiu abraçar o papel de mártir – quiçá certos da anistia.
Na terça-feira 25, a Primeira Turma do tribunal decidirá se acata a denúncia da PGR e transforma em réus Bolsonaro e outros sete acusados de formar o núcleo articulador da tramoia golpista. Segundo o procurador-geral, Paulo Gonet, o ex-presidente liderava uma facção violenta imbuída do propósito de abolir o Estado de Direito. Na quarta-feira 19, em uma prévia do que acontecerá na próxima semana, os ministros da Corte rejeitaram os pedidos da defesa do capitão, do ex-ministro Walter Braga Netto e do general da reserva Mário Fernandes para declarar impedidos os juízes Alexandre de Moraes, Flávio Dino e Cristiano Zanin. Os três integram a Primeira Turma ao lado de Carmén Lúcia e Luiz Fux.

Moeda de troca. O projeto para livrar a cara dos golpistas entra no contexto dos atritos entre os três poderes – Imagem: Kayo Magalhães/Agência Câmara
No Congresso, os partidos do “Centrão” fazem o jogo de sempre. Escondem as cartas e blefam na tentativa de levar alguma vantagem a cada rodada. Gilberto Kassab, senhor do PSD e exímio equilibrista, manteve os pés nas duas canoas. Metade da legenda, afirmou, é a favor da anistia. Ou seja, a outra metade é contra. Um dos expoentes da agremiação, o ex-presidente do Senado Rodrigo Pacheco rejeitou ocupar um ministério de Lula, mas declarou apoio antecipado à reeleição. Pesa na decisão, de acordo com ele, o fato de o petista defender a democracia. Ao assumir o comando da Casa no lugar de Pacheco, Davi Alcolumbre, do União Brasil, disse que o assunto não interessa aos brasileiros. O presidente da Câmara, Hugo Motta, do Republicanos, prefere a tática do morde e assopra. Ora dá no cravo, ora na ferradura, o que contribui para o clima de incerteza em relação à tramitação do projeto. Aliados do Palácio do Planalto monitoram o desenrolar das negociações no Parlamento. Mais: um projeto de anistia acabaria em xeque na Justiça, por inconstitucional, e elevaria o grau de confronto entre o Congresso e o Supremo.
O deputado Rogério Corrêa, do PT de Minas Gerais, define a proposta como “sem pé nem cabeça” e não vê clima para aprovação. “Como falar em anistia antes do julgamento, principalmente daqueles que planejaram o crime de formação de quadrilha para tentar derrubar um presidente eleito e acabar com nosso direito de fato?”, pergunta. “É um crime grave, tem de ser apurado. Se de fato fossem inocentes, os denunciados não pediriam anistia, diriam que são inocentes e que vão provar a sua inocência.” Nas redes sociais, o advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, tripudiou: “Com o recebimento da denúncia pelo Supremo, dia 25 de março, a próxima manifestação a favor da anistia deverá ter 1.800 pessoas. Com a condenação, que deverá se dar até setembro, se fizerem outra, estarão presentes 180. Após a prisão não deverá haver manifestação, pois sequer o Bolsonaro estaria presente, por motivos óbvios”. •
A covardia está no sangue
Eduardo Bolsonaro pede arrego aos Estados Unidos

Novilíngua. Para a família, fugir virou ato de bravura – Imagem: Gage Skidmore
A pose é de herói, mas as escolhas são de um pusilânime. Em um vídeo no Instagram, o deputado federal Eduardo Bolsonaro anunciou, na terça-feira 18, a decisão de se licenciar do cargo e permanecer nos Estados Unidos, onde está atocaiado desde o Carnaval, supostamente para melhor “combater e denunciar” o que seriam as arbitrariedades do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, no inquérito do golpe. “Bananinha” fez jus ao apelido. Abandonou o rebanho antes de o lobo chegar. O parlamentar não integra a lista dos primeiros denunciados pela Procuradoria-Geral da República, encabeçada por seu pai, mas, tudo indica, não escapará do escrutínio de Paulo Gonet. Em sua delação premiada, o ex-ajudante de ordens Mauro Cid informou que Eduardo, ao lado de Michelle Bolsonaro, era um dos mais inflamados defensores de uma quartelada violenta para impedir a posse de Lula. Naquela altura, quando se considerava impune, não lhe faltava destemor. O filho 03 é autor da célebre frase “para tomar o Supremo, basta um cabo e um soldado”. O cabo e o soldado ficaram no quartel, o golpe fracassou e restou ao gabarola pedir colo a Donald Trump. Durante o vídeo, o deputado afirmou temer a prisão. Em entrevistas posteriores, não conteve as lágrimas. Na novilíngua bolsonaresca, fugir virou um ato de resistência. “Não irei me acovardar (oi?), não irei me submeter ao regime de exceção (????) e aos seus truques sujos” (…) Irei me licenciar (…) e buscar as devidas sanções aos violadores de direitos humanos (Dudu, direitos humanos não servem apenas para humanos direitos?). O autoexílio demonstra: a covardia é um traço do DNA da família, está no sangue. Não causaria surpresa se Bolsonaro sênior usasse o mesmo expediente do rebento. Portas (do fundo) abertas em certas embaixadas não faltarão. E a turma ainda queria dar um golpe em nome dessa gente.
– por Sergio Lirio
Publicado na edição n° 1354 de CartaCapital, em 26 de março de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Delírios tropicais’