O SUS é a joia da democracia brasileira que rompe com o colonialismo. Entrevista especial com Deisy Ventura

Ao reconhecer constitucionalmente o direito à saúde para todas as pessoas como dever do Estado, o SUS rompe formalmente com ideias e práticas da colonialidade, afirma a pesquisadora

Por IHU-Instituto Humanitas Unisinos e Baleia Comunicação 

O Brasil exercerá a presidência do G20, grupo formado pelas 19 maiores economias do mundo mais a União Africana e União Europeia, até 30-11-2024.

Na ocasião, o país “poderia utilizar como oportunidade para impulsionar diversas agendas”, destaca Deisy Ventura, na entrevista a seguir concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Deisy é uma das autoras do dossiê O Brasil deve usar sua liderança no G20 para apoiar os sistemas de saúde pública e promover a descolonização da saúde global [em tradução literal], publicado no British Medical Journal, que buscou evidenciar a importância da saúde na agenda do G20.

O texto também chama a atenção para o fato de que o Sistema Único de Saúde, por meio do atendimento universal, é capaz de romper com a lógica colonial que rege o país, promovendo a democracia.

“O SUS não apenas é fruto da retomada da democracia brasileira, após a Constituição Federal de 1988, como também promove a democracia formal, ao ter a participação social como princípio; e a democracia material, ao prover serviços de saúde a todas as pessoas, independentemente de seu vínculo trabalhista, renda etc.”, explica.

Alvo de muitas críticas e ataques, que encontram ecos nos problemas reais e na sociedade desinformada, a saúde pública brasileira serve como modelo ao mundo há mais de 30 anos, tanto pelo atendimento universal, como pelas políticas públicas e programas, entre eles o de imunização.

“Quando estamos no exterior e afirmamos que toda a pessoa que se encontra no território brasileiro tem direito à saúde, parece uma utopia, mas para nós é a realidade há três décadas – uma realidade imperfeita e assimétrica, por certo, na encruzilhada entre disputas ideológicas e políticas de vulto”, afirma a pesquisadora.

O assédio neoliberal ao SUS está no centro do ideário “de quem percebe a saúde como um grande mercado, e opera, forte e cotidianamente, em prol da privatização completa do setor”, assevera a entrevistada.

“Ao agir desta forma em um país com profundas desigualdades, como o Brasil, tais atores preconizam, aberta ou veladamente, uma ‘seleção natural’ entre indivíduos que, ao eliminar os ‘mais fracos’, ‘melhoraria a espécie humana’ em seu conjunto”, analisa.

A professora salienta também a importância do SUS em relação à segurança alimentar e nutricional da população.

“No Brasil, o SUS mantém forte atuação em matéria de combate à fome e promoção da segurança alimentar, o que se explica pela evidente interligação entre o direito à saúde e o direito à alimentação adequada”, comenta.

Deisy Ventura é professora titular de Ética da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo – USP, onde é coordenadora do PPG em Saúde Global e Sustentabilidade.

É vice-diretora do Instituto de Relações Internacionais – IRI/USP, onde é professora do PPG em Relações Internacionais.

Doutora em Direito Internacional e mestre em Direito Comunitário e Europeu pela Universidade de Paris 1, Panthéon-Sorbonne. É também graduada em Direito e mestre em Integração Latino-americana da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM.

Confira a entrevista.

IHU – Em que sentido o SUS é um modelo de saúde pública para outros países?

Deisy Ventura – Em primeiro lugar, por sua essência, que é a garantia do acesso universal à saúde por meio de um sistema público, instalado na quase totalidade de um território de dimensões continentais, com grande experiência de trabalho em rede, baseada em um difícil equilíbrio federativo.

No plano individual, há uma diferença enorme entre enfrentar dificuldades ao exercer o direito à saúde, e simplesmente não ter direito à saúde, como ocorre em muitos países, inclusive ricos.

Quando estamos no exterior e afirmamos que toda a pessoa que se encontra no território brasileiro tem direito à saúde, parece uma utopia, mas para nós é a realidade há três décadas – uma realidade imperfeita e assimétrica, por certo, na encruzilhada entre disputas ideológicas e políticas de vulto.

Em segundo lugar, diversos programas do SUS são referência internacional, como, por exemplo, a resposta brasileira ao HIV/aids nos anos 1990; durante décadas, o programa nacional de imunizações; e, até hoje, a estratégia de saúde de família e os agentes comunitários de saúde, entre muitos outros.

IHU – Há críticas em relação ao SUS. Qual o paradigma que orienta essas críticas? É uma crítica neoliberal?

Deisy Ventura – Com certeza existem críticas neoliberais, de quem percebe a saúde como um grande mercado e opera, forte e cotidianamente, em prol da privatização completa do setor.

Ao agir desta forma em um país com profundas desigualdades, como o Brasil, tais atores preconizam, aberta ou veladamente, uma “seleção natural” entre indivíduos que, ao eliminar os “mais fracos”, “melhoraria a espécie humana” em seu conjunto.

Na linha neoliberal está também quem afirma que um sistema público de saúde eficiente não seria viável do ponto de vista dos gastos públicos, quando, bem ao contrário, ele seria altamente benéfico para a economia, protegendo a força de trabalho, e por sua ênfase na promoção da saúde, reduzindo, e não aumentando, os gastos com saúde.

No entanto, estes mesmos atores não hesitam em beneficiar-se de generosas isenções fiscais, e de disputar com o SUS os recursos públicos investidos em saúde.

Porém, o seu discurso encontra eco nos defeitos do SUS, como as longas filas de espera, as assimetrias entre qualidade de serviços, a demora ou a falta de vacinas, e as dificuldades de gestão que são denunciadas massiva e diariamente nos meios de comunicação.

São problemas reais que causam enorme sofrimento aos brasileiros, mas eles jamais serão resolvidos por meio da privatização. A crescente e legítima insatisfação dos usuários de planos de saúde privados, cada vez mais caros e limitados, é prova disto.

No entanto, é muito importante sublinhar que nem toda crítica ao SUS é neoliberal. Existem numerosas críticas importantes e legítimas, que precisam ser escutadas pelo Estado e pela sociedade.

Entre muitas delas, eu destacaria o trabalho da professora Ligia Bahia, que aponta a generalização do recurso às organizações sociais de saúde, que instauram a precarização do trabalho, a ambiguidade entre público e privado, e a fragmentação da gestão.

Bahia também critica duramente a ideia de que existem dois sistemas de saúde, sendo um para os pobres e outro para os ricos, explicando que na verdade temos um só sistema, e dentro dele existe um setor privado em expansão, mas com muitas conexões com o público.

IHU – O dossiê publicado pelo British Medical Journal – BMJ sobre a liderança em saúde do Brasil no G20 apresenta o Sistema Único de Saúde como um projeto decolonial. Por que ele é visto desta forma? Quais as características que o colocam como um projeto decolonial?

Deisy Ventura – O Brasil lida até hoje com o legado colonial da escravidão, do genocídio indígena, da extração predatória de recursos naturais e de diferentes formas de autoritarismo.

A persistência de brutais desigualdades estruturais tem reflexos decisivos na saúde das populações.

Ao reconhecer constitucionalmente o direito à saúde para todas as pessoas, como dever do Estado, o SUS rompe formalmente com ideias e práticas da colonialidade, como a negação de direitos aos “subalternizados”.

Chamamos a atenção para o fato de que o SUS não apenas é fruto da retomada da democracia brasileira, após a Constituição Federal de 1988, como também promove a democracia formal, ao ter a participação social como princípio; e a democracia material, ao prover serviços de saúde a todas as pessoas, independentemente de seu vínculo trabalhista, renda etc.

Além disso, apresentar como modelos experiências inovadoras de um país considerado “emergente” ou “em desenvolvimento” desloca o olhar do centro para a periferia, pondo em questão a “superioridade” das soluções propostas por países ricos.

Diga-se de passagem, a defesa de um sistema público de acesso universal colide frontalmente com o ideário que preconizou o desmonte do Estado, as políticas de austeridade, privatizações e precarização do trabalho, predominante em âmbitos internacionais nas últimas décadas, que justifica e amplia os efeitos da marginalização histórica de determinados grupos.

IHU – Qual a importância da segurança alimentar no processo descolonização da saúde global?

Deisy Ventura – A chamada “colonialidade alimentar” se expressa pela imposição de padrões alimentares e de consumo orientados por interesses econômicos dos países desenvolvidos.

O SUS mantém forte atuação em matéria de combate à fome e promoção da segurança alimentar, o que se explica pela evidente interligação entre o direito à saúde e o direito à alimentação adequada.

Por exemplo, o Guia Alimentar para a População Brasileira (na íntegra, ao final), elaborado pelo Ministério da Saúde, fornece orientações para práticas alimentares saudáveis e sustentáveis, nos planos individual e coletivo.

Difundidas pelo SUS em todo o território nacional, elas apontam o risco trazido pelo consumo de alimentos ultraprocessados, e promovem ingredientes típicos da dieta brasileira, como o arroz e o feijão.

Outro exemplo importante desta interligação é o papel das unidades básicas de saúde, com sua extraordinária capilaridade, na identificação de famílias que se encontram em situação de insegurança alimentar.

A experiência da covid-19, neste sentido, foi plena de ensinamentos não aprendidos.

Nossos estudos sobre respostas periféricas à covid-19, que começarão a ser publicados nos próximos meses, indicam que a alimentação esteve no centro das respostas periféricas à covid-19, ou seja, da resposta que alcançou, de fato, a maioria da população urbana brasileira.

Ao focar nosso olhar na vacinação quando falamos de resposta à pandemia, reproduzimos a nefasta prática colonial da “bala mágica”, ou seja, a ideia de que um medicamento resolverá milagrosamente um problema de saúde.

Embora a vacinação seja da maior importância, antes que ela chegasse, e mesmo depois que ela chegou, o elemento decisivo para a maioria da população foi a necessidade de alimentar-se e alimentar a família, como condição fundamental para que as recomendações das autoridades sanitárias pudessem ser atendidas.

Não é à toa que a extrema-direita explorou ao máximo, em sua propaganda ideológica e eleitoral, a inviabilidade do slogan “Fique em casa” consolidando no imaginário popular o dilema entre morrer de fome ou morrer de covid-19, e fomentando o falso antagonismo entre proteção da economia e proteção da saúde.

Por estudar as pandemias há mais de 15 anos, fico chocada ao constatar a ampla difusão no Brasil do enfoque biomédico e securitário da resposta a emergências, preconizado por think tanks e universidades do mundo desenvolvido, por tecnocratas que nunca saíram de seus gabinetes e por produtivistas acadêmicos que se tornam “especialistas súbitos” nos temas para os quais há farto financiamento e notoriedade, trazendo para o campo da saúde pública os seus piores vícios, entre eles o positivismo científico.

A reprodução acrítica de velhos saberes sobre resposta às emergências é um desserviço à sociedade, mas também à própria ciência.

Embora não venha recebendo o devido investimento e atenção, estou certa de que o estudo das estratégias de alimentação durante a resposta à covid-19 trará uma grande contribuição brasileira às tecnologias sociais de enfrentamento de emergências, especialmente quando integradas aos sistemas de saúde.

Além disso, outros aspectos cruciais da resposta às pandemias nos quais o Brasil poderia trazer uma contribuição decisiva estão fora do debate do mainstream, como o impacto das medidas restritivas de direitos e as formas de governança das crises sanitárias, cujo estudo depende de uma escuta atenta dos profissionais da linha de frente, de entidades sociais e de pesquisadores dedicados a contar a história das crises sanitárias sob o prisma da “vida real” das populações, em especial as marginalizadas.

IHU – Atualmente, como se caracterizam as políticas públicas de saúde no Brasil? Como elas orientam-se em exemplos supostamente bem-sucedidos no mundo e como, por outro outro lado, valorizam projetos nacionais? Quais são os limites e possibilidades destas estratégias?

Deisy Ventura – O Brasil é um país respeitado no exterior por suas políticas públicas de saúde, talvez até mais reconhecidas fora do que dentro do Brasil.

Por outro lado, atuam no país representantes de interesses econômicos vultosos, tanto de oligarquias locais como de Estados e corporações estrangeiros.

Frequentemente vemos governantes que contratam consultorias estrangeiras milionárias a fim de oferecer soluções milagrosas para problemas sobre os quais já existem estudos qualificados e proposições concretas de instituições públicas, universidades e movimentos sociais.

Os limites e as possibilidades das estratégias brasileiras são muitos, mas eu destacaria, neste amplo leque, o desafio de enfrentar a propaganda contra o SUS e contra a saúde pública que cresceu vertiginosamente nos últimos anos.

IHU – Qual a importância de o Brasil presidir o G20 e qual a relevância da pauta da saúde neste contexto?

Deisy Ventura – Quando decidimos organizar este dossiê para o BMJ, nossa preocupação foi justamente chamar a atenção para a importância da saúde na agenda do G20, considerando especialmente que a experiência da covid-19 está sendo esquecida em uma velocidade vertiginosa.

O recente fracasso das negociações de um tratado internacional sobre pandemias é um exemplo da falta de vontade política dos Estados de assumir compromissos no campo da saúde.

Nosso dossiê apresenta três artigos que pretendem valorizar a liderança brasileira do G20.

O primeiro tem entre seus autores uma grande referência da diplomacia da saúde, que é Paulo Buss, do Centro de Saúde Global e Diplomacia da Saúde da Fiocruz.

O artigo oferece uma síntese da nossa política externa no campo, apontando como o Brasil poderia utilizar a inédita presidência do G20 como oportunidade para impulsionar diversas agendas.

O segundo artigo foi liderado por Vitor Henrique Pinto Ido (FD/USP) e procurou compilar a visão da sociedade civil sobre a atuação brasileira no G20, cobrando do governo brasileiro uma passagem do discurso à ação em diversos temas.

Quanto ao nosso artigo, ponderamos que a defesa do SUS contraria o receituário excludente e privatista da maior parte do mundo desenvolvido.

Sendo um líder importante do chamado “Sul Global”, o Brasil desempenhará um papel fundamental ao defender no G20 o acesso universal à saúde e os sistemas públicos de saúde. Não se trata de uma defesa teórica, mas de uma experiência de mais de três décadas.

Argumentamos que o SUS foi um marco de resistência democrática durante um governo de extrema-direita (2019-2022), apesar de suas dificuldades e de seus limites.

IHU – Como a senhora vê as manobras políticas que colocam em risco o orçamento, cada vez mais deficitário, da Saúde com o regramento previsto para o Arcabouço Fiscal?

Deisy Ventura – A austeridade mata, como demonstraram David Stuckler e Sanjay Basu em seus estudos sobre as consequências desastrosas das políticas de austeridade sobre a saúde e também sobre a própria economia.

O subfinanciamento do SUS gera o notório círculo vicioso: falta de recursos gera ineficiência e falta de confiança, ineficiência e falta de confiança justificam a falta de recursos.

IHU – Por que é nosso dever cidadão defender o SUS?

Deisy Ventura – O SUS é o florão da democracia material brasileira. Todos os dias, apesar de seus limites, ele garante a saúde e a vida de milhões de brasileiros.

Mesmo aqueles que não são usuários do SUS desfrutam dos efeitos dos programas de imunização, de vigilância em saúde e de tantas outras políticas que parecem invisíveis, mas que consistem objetivamente na luta cotidiana pelo predomínio do interesse público na abordagem brasileira da saúde.

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Última Atualização: 05/08/2024