Despesas recuam (em relação ao PIB). Déficit desaba e desmente crise fiscal

por Lauro Veiga Filho

A ofensiva continuada da “esquadrilha austericida” em seu intento de desmontar o Estado e suas políticas em favor dos mais desfavorecidos adotou como bordão preferido a tal “gastança”, como forma de alardear uma crise fiscal dramática. A esta altura, ainda que os dados não referendem e até desmintam os ataques hidrófobos da “esquadrilha”, a repetição monotônica daquele discurso pela mídia descompromissada com os interesses reais do País tem contaminado não apenas o debate econômico, mas até mesmo as conversas nos balcões das lojas e em mesas de bar.

O dono de uma pequena venda de suco de laranja queixava-se que “as coisas estão piores agora” porque o governo “está gastando demais”. Frequentadores de barzinhos repetem irrefletidamente o mesmo refrão, como se o corte rasteiro de despesas públicas fosse solucionar todos os problemas do País e especialmente colocando um ponto final numa suposta escalada inflacionária – que, ao contrário do “senso comum”, não está descontrolada e nem enfrenta a perspectiva de uma disparada ao longo do ano. Para relembrar, a inflação acumulada em 12 meses havia alcançado 4,62% em dezembro de 2023 e chegou a 4,56% em janeiro passado.

Reproduzida por dez a cada dez analistas e comentaristas econômicos abrigados na Faria Lima, centro financeiro paulistano, e na grande imprensa corporativa, a retórica da “esquadrilha” certamente tem como alvo os gastos com as faixas da população que mais necessitam e utilizam os serviços prestados pelo setor público. Propositadamente, deixa de fora a segunda maior rubrica na lista de despesas consolidadas do governo central, na soma dos gastos gerais do Tesouro, da Previdência e do Banco Central (BC), e desconsidera que as contas fiscais, na verdade, têm apresentado nítida melhoria nos últimos anos, a despeito de flutuações ano a ano.

A falsa “gastança”

Os dados da Secretaria do Tesouro Nacional (STN) claramente referendam esse tipo de avaliação. Na métrica convencionalmente mais aceita pelos gestores da política fiscal, em dados devidamente atualizados com base no Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), calculado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as despesas primárias totais realizadas entre 2021 e 2024, excluídos os gastos com juros, atingiram pouco mais de R$ 8,500 trilhões, o que se compara com alguma coisa abaixo de R$ 7,637 trilhões na soma de 2016 a 2019 (os números do exercício fiscal de 2020 foram propositalmente deixados de fora, dadas as distorções causadas pela pandemia na execução orçamentária, destacadamente no lado dos gastos públicos). Houve de fato um aumento real, descontada a inflação, de 11,30% entre aqueles dois períodos. Mas a relação entre despesas primárias e Produto Interno Bruto (PIB), na média anual, baixou de 19,54% para 18,54% – quer dizer, um ponto percentual a menos, considerando os valores nominais acumulados em cada um daqueles períodos.

A redução proporcional pode ser estimada como um ajuste próximo de R$ 418,94 bilhões em quatro anos, perto de R$ 104,74 bilhões a cada ano. Caso a proporção entre despesas primárias (aqui medida em valores nominais) e PIB tivesse se mantido em 19,54% do total das riquezas produzidas pelo País, o déficit teria alcançado perto de 1,62% do PIB, numa diferença a maior de 161% em relação ao resultado efetivamente realizado entre 2021 e 2024. Mais uma vez, apenas para reforçar, não houve e não há uma “gastança” no governo central, quando entendida como um crescimento desenfreado das despesas.

As receitas primárias líquidas, desconsideradas aquelas de caráter financeiro e depois de descontadas as transferências para Estados e prefeituras, apresentaram variação de 18,94% (agora em termos reais, a valores atualizados com base no IPCA), subindo de R$ 6,917 trilhões para R$ 8,226 trilhões. Os dados da STN mostram um ganho aproximado, neste caso, de R$ 1,310 trilhão, quer dizer, acima do aumento registrado para as despesas. A relação entre receitas primárias e PIB, no entanto, variou marginalmente, saindo de 17,70% para 17,92% (quer dizer, um incremento de somente 0,22 pontos percentuais). Vale repetir, o ajuste ocorreu de forma mais intensa no lado das despesas.

O resultado primário, descontada a variação do IPCA, desabou 62,0% entre os dois períodos avaliados aqui, saindo de R$ 720,580 bilhões para R$ 273,793 bilhões (em torno de R$ 446,787 bilhões a menos). A fatia do déficit primário sobre o PIB encolheu de 1,84% para 0,62%. Num exercício hipotético, apenas para reforçar o esforço fiscal realizado, supondo-se que as receitas tivessem preservado a mesmo percentual em relação ao PIB, em torno de 17,70%, também entre 2021 a 2024. Neste caso, o déficit ainda assim teria recuado para 0,84% do PIB, configurando um ajuste ainda expressivo de um ponto percentual sobre o produto bruto.

A verdadeira gastança

Mas quando a conta de juros é incluída na equação, o cenário se altera, levando a um déficit muitas vezes maior – mais precisamente, 10,53 vezes maior do que o resultado primário. Os gastos com juros saltaram quase 40% em termos reais na comparação entre o total desembolsado entre 2016 a 2019 e de 2021 a 2024, escalando de R$ 1,842 trilhão para R$ 2,579 trilhões, quer dizer, uma pressão adicional de R$ 736,492 bilhões sobre as contas do governo central, configurando, aqui sim, a verdadeira “gastança”. Sua participação no PIB saiu de 4,70% para 5,69%, na contramão das demais despesas.

O resultado nominal, já com a inclusão dos juros, passou a ser deficitário em R$ 2,884 trilhões, subindo 13,71% em relação ao déficit de R$ 2,537 trilhões registrado nos quatro anos entre 2016 e 2019. A intensidade de crescimento do déficit nominal, na verdade, foi contida em função da queda no resultado primário, o que ajudou ainda a reduzir discretamente a relação entre resultado nominal e PIB, de 6,47% para 6,38%.

Numa estimativa própria, acrescentada a conta dos juros, as despesas totais do governo central atingiriam alguma coisa próxima a R$ 11,079 trilhões, perto de 24,23% do PIB no acumulado entre 2021 e 2024, o que se compararia a R$ 9,479 trilhões nos quatro anos entre 2016 e 2019, praticamente mantendo a mesma relação com o total de riquezas geradas pelo País no período (24,24%). Em termos reais, houve um incremento de 16,87%, num acréscimo de R$ 1,599 trilhão, dos quais pouco aproximadamente 46,1% tiveram como origem a conta dos juros.

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Juros x gastos sociais

Sob ataque da “esquadrilha austericida”, as despesas com abono salarial, seguro desemprego, benefícios de prestação continuada (a exemplo da renda mensal vitalícia paga a idosos carentes e portadores de deficiência de famílias de baixa renda) e o Bolsa Família, somados, responderam por uma fatia de apenas 21,70% no aumento das despesas totais (juros incluídos). De fato, aquelas despesas, que ajudaram a construir uma incipiente rede de proteção social a famílias de renda mais baixa, cresceram fortemente em termos reais, saindo de R$ 802,640 bilhões para quase R$ 1,150 trilhão, em alta de 43,25% entre os dois períodos analisados. Os ajustes e a expansão do Bolsa Família, que teve seus gastos ampliados de R$ 172,542 bilhões para R$ 478,334 bilhões (num salto de 177,23%), explicam 88,1% do aumento total dos gastos sociais. Como proporção do PIB, no entanto, a relação passou de 2,05% para 2,54%.

Qualquer que seja a métrica, a despesa com juros foi 2,24 vezes mais alta do que todos os recursos consumidos por aqueles programas nos últimos quatro anos.

E a dívida?

O avanço do endividamento público nos últimos anos foi igualmente impulsionado pela conta dos juros. As correntes mais ortodoxas do debate econômico argumentam que os juros são altos porque o governo se endividou demais para cobrir seus déficits, gerando maior desconfiança em relação à capacidade do setor publico de honrar sua dívida. Por isso, os “credores” exigem juros mais altos para continuarem a comprar títulos públicos federais – e por “credores” aqui entenda-se todo o sistema financeiro, grandes grupos econômicos, empresas médias e pequenas e até o correntista que deixa parte de seu dinheiro aplicado em papéis do Tesouro Nacional.

Todo aquele endividamento, de toda forma, está contratado em moeda nacional – um dado desprezado pela “esquadrilha austericida”. Em grande parte, a rolagem (renovação) do estoque da dívida pública ocorre com a oferta ao mercado de novos títulos, mas uma parte dessa rolagem já é sustentada por emissões de moeda, especialmente para financiar a conta dos juros. Adicionalmente, a queda do déficit primário, como visto, não produziu juros mais baixos, pelo contrário. As séries estatísticas do Banco Central (BC) mostram que o gasto com juros tem sido o principal fator por traz do endividamento crescente.

De acordo com números do BC, o saldo da dívida bruta do governo geral (incluindo União, governos estaduais e municipais, além das estatais), a valores nominais, subiu de R$ 3,252 trilhões em 2014 para R$ 8,984 trilhões no ano passado, saltando 176,23%. Em relação ao PIB, a dívida avançou de 56,28% para 76,07%. Aquela variação correspondeu a um incremento (também nominal) de R$ 5,732 trilhões em números aproximados, dos quais R$ 5,492 trilhões corresponderam ao valor dos juros acrescentados ao saldo da dívida. Mais objetivamente, a conta dos juros respondeu por 95,81% do aumento sofrido pela dívida bruta.

Ao longo daqueles dez anos, o setor público recomprou algo como R$ 86,543 bilhões em títulos que estavam em poder do mercado, já descontadas as operações de venda de papéis novos, o que teoricamente deveria ter contribuído para reduzir o valor da dívida. Em torno de R$ 302,319 bilhões foram somados ao saldo devedor em decorrência de ajustes cambiais, enquanto o reconhecimento de dívidas somou R$ 87,561 bilhões, contribuindo com 1,53% para o crescimento do saldo total da dívida bruta.

Publicado também em O Hoje

Lauro Veiga Filho – Jornalista, foi secretário de redação do Diário Comércio & Indústria, editor de economia da Visão, repórter da Folha de S.Paulo em Brasília, chefiou o escritório da Gazeta Mercantil em Goiânia e colabora com o jornal Valor Econômico.

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Last Update: 18/02/2025