Os dias que cercaram a transição e o início do novo mandato de Donald Trump nos Estados Unidos foram acompanhados por acontecimentos marcantes no campo da disputa tecnológica com a China.
Antes do lançamento do assistente de inteligência artificial DeepSeek, que fez derreter o valor de mercado de grandes empresas estadunidenses em cerca de 1 trilhão de dólares, outro evento já havia tomado conta do noticiário especializado.
Em meio às incertezas com relação à continuidade dos serviços do aplicativo TikTok no país, ameaçado de banimento desde o primeiro mandato de Trump, parte dos quase 200 milhões de usuários americanos migrou para o RedNote, aplicativo de outra rede social chinesa.
O movimento ganhou visibilidade nas redes com milhões de menções à hashtag #tiktokrefugee, expressando a condição autodeclarada de refugiados digitais por parte da massa de migrantes yankees que aportou na nova rede. O fenômeno carrega uma ironia: o nome do aplicativo 小红书 (lê-se xiaohongshu) é referência literal ao “pequeno livro vermelho” de pensamentos de Mao Tse-Tung, sempre empunhado nas imagens imortalizadas dos soldados vermelhos nos anos da Revolução Cultural.
Esse episódio trouxe um aspecto inédito, proporcionando contato direto dos usuários ocidentais com a base de centenas de milhões de usuários chineses, promovendo trocas de mensagens e diálogos em tempo real em streaming entre pessoas situadas em lados opostos do globo.
Um rápido passeio pela rede proporciona uma divertida experiência de voyeur desses encontros, em que se testemunha a avidez por contato e curiosidades recíprocas. Se há espontaneidade no movimento por parte dos usuários estadunidenses, parece haver pelo lado chinês algum grau de coordenação: diferentemente do que acontece em aplicativos análogos, o registro de usuário no RedNote foi aberto para autenticação por números de telefone de fora da China continental. Isso certamente não é acidental, diante do notório rigor regulatório que recai sobre a internet no país. Essa “política migratória” de portas abertas para os refugiados digitais é certamente deliberada por parte das autoridades chinesas.
Mas foi o feito protagonizado pela startup DeepSeek Inc, sediada em Hangzhou, que realmente roubou a cena. Com atuação inicialmente voltada ao desenvolvimento de soluções de IA para o mercado doméstico, nas áreas de finanças, saúde, varejo e logística, a empresa conquistou notoriedade global quase instantânea e seu aplicativo foi baixado por milhões de usuários em todo o mundo em poucas horas.
Quais seriam os aspectos mais notáveis por trás deste lançamento que explicariam o impacto devastador sobre o mercado de capitais nos EUA?
O primeiro fato é o de reforçar a percepção de que as restrições impostas pelos EUA não estão impedindo a continuidade do desenvolvimento tecnológico e inovativo dos chineses. Nesse caso em particular, parece que as restrições acabaram por estimular o desenvolvimento de processos mais otimizadas e eficientes diante da limitação do acesso a recursos. Com uma solução diferente de engenharia de aprendizado de máquina, a empresa obteve resultados similares aos das big techs americanas empregando uma pequena fração dos custos. Isso também significa o emprego de um número substantivamente menor de processadores e menor consumo de energia.
Além de derrubar o valor de mercado de fornecedores de insumos tecnológicos para aplicações de IA (notadamente processadores da Nvidia) ao sinalizar uma demanda futura potencialmente menor, o modelo de negócios das principais empresas do setor é colocado em xeque: não apenas pelo fato de a solução chinesa ser oferecida ao público gratuitamente, mas também porque foi publicada como open source, ou seja, permitindo replicar seu mecanismo livremente, bem como a incorporação de sua solução tecnológica como parte de outros sistemas e aplicações.
Os eventos narrados são ilustrativos dos desafios que se colocam para o projeto de reafirmação da liderança estadunidense em meio à “guerra tecnológica” em curso — e não são casos isolados. O que talvez seja mais surpreendente é o tom de espanto de boa parte dos analistas do Ocidente, que reagem ao avanço de empresas chinesas como se fora a ocorrência de “raio em céu azul”, tomando de empréstimo expressão celebrizada por um certo pensador alemão do século XIX.
Assim, um ponto a se destacar é que esses fenômenos devem ser compreendidos como resultado de uma estratégia mais ampla de desenvolvimento nacional. A emergência das empresas chinesas voltadas aos segmentos de tecnologia digital e, especialmente, ao desenvolvimento de IA deve ser interpretada como manifestação exitosa do objetivo de Rejuvenescimento da Nação Chinesa, mais do que resultado de estratégias empresariais isoladas.
Uma vez que a IA se configura como uma das áreas centrais no paradigma tecno-econômico que se convencionou denominar de Indústria 4.0, diversas iniciativas têm buscado fomentar as capacidades tecnológicas e inovativas locais na área, como o Plano Nacional de Desenvolvimento de Inteligência Artificial (2017). Os resultados são impressionantes, como mostra o gráfico 1.
Além do fortalecimento do sistema nacional de inovação e do planejamento de longo prazo, um elemento distintivo da estratégia de desenvolvimento chinesa em IA é o entendimento destas tecnologias como instrumentos para o desenvolvimento das bases produtivas nacionais e do provimento de serviços públicos de qualidade. Ou seja, mais do que o fomento a uma tecnologia per se, as políticas industrial e tecnológica chinesas entendem a IA como um elemento habilitador de uma transformação estrutural mais ampla.
Esse desenvolvimento se dá a partir de programas governamentais que têm como objetivo deliberado a criação de plataformas tecnológicas chinesas. Dentre as empresas selecionadas para liderar o desenvolvimento dessas plataformas estão Baidu, Alibaba, Tencent, iFlytek e Sensetime. O objetivo último seria, então, aumentar a eficiência das políticas públicas e promover uma melhora do padrão de vida da sociedade chinesa. Um dos principais exemplos dessas iniciativas amplamente baseadas no uso de IA é a o Alibaba City Brain.
O modelo chinês está sendo capaz de moldar uma relação de estreita cooperação entre as big techs locais e o Estado, em que o setor privado desempenha funções alinhadas aos objetivos nacionais voltados ao desenvolvimento econômico e social. Essa estratégia se materializa num conjunto de iniciativas que têm por objetivo alçar o país à condição de economia liderada pela inovação em 2035 e de super potência tecnológica no centenário da Revolução Comunista em 2049.
Em síntese, os sinais de sofisticação tecnológica e inovativa são contundentes em diversas dimensões. Os avanços recentes das big techs são apenas a expressão de uma das dimensões deste processo mais amplo. Particularmente, estes avanços derivam da construção de um sistema nacional de inovação distinto daquele vigente no Vale do Silício, promovendo uma integração funcional entre a atuação das empresas privadas e os ambiciosos objetivos de Rejuvenescimento da Civilização Chinesa.
Talvez seja por esse motivo que os analistas mainstream do Ocidente tenham tanta dificuldade de compreender esses fenômenos, reagindo com o espanto de quem se depara com um “raio em céu azul”.