A noite desta quarta-feira (10) produziu duas decisões de forte impacto político — e de evidente assimetria — no plenário da Câmara dos Deputados. Com apenas 227 votos a favor, a Casa rejeitou a cassação de Carla Zambelli (PL-SP), condenada definitivamente pelo STF a dez anos de prisão, presa na Itália e sem direitos políticos. Horas antes, aprovou por 318 votos a suspensão do mandato do deputado Glauber Braga (PSOL-RJ), revertendo a cassação proposta pelo Conselho de Ética.
A diferença de tratamento acendeu críticas de parlamentares da oposição e da esquerda, que apontaram um “duplo padrão jurídico e político” da Casa.
A decisão sobre Zambelli: ruptura institucional e descompasso com o STF
A rejeição da cassação de Zambelli rompeu com a recomendação da CCJ — 32 votos a 2 a favor da perda de mandato — e criou um impasse constitucional. A Constituição prevê a perda automática do mandato em caso de condenação definitiva superior a 120 dias, já que o parlamentar incorre em faltas além do limite permitido. A Primeira Turma do STF aplicou justamente esse entendimento ao determinar a perda imediata do mandato.
O plenário, contudo, adotou interpretação distinta: tratou o caso como hipótese de cassação mediante voto político, e não como ato administrativo obrigatório da Mesa.
A deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) criticou duramente a escolha:
“Não somos casa revisora do Judiciário. A deputada já está presa, condenada e sem direitos políticos. Trazer esse tema ao plenário foi um erro da Mesa. Manter esse mandato inexistente cria um limbo jurídico absurdo.”
Ela ainda reforçou que a preservação do mandato afronta a Constituição e fragiliza a resposta institucional a ataques às instituições republicanas.
Daiana Santos (PCdoB-RS) foi ainda mais direta na indignação:
“Vergonha! A Câmara acaba de arquivar o processo de cassação de Carla Zambelli. O povo brasileiro seguirá pagando o custo de uma deputada condenada, presa na Itália.”
A permanência de Zambelli no cargo, mesmo presa no exterior, reacendeu paralelos com o caso Natan Donadon (2013), outro episódio de desgaste institucional em que a Câmara blindou um parlamentar condenado.
O caso Glauber: suspensão como “vitória parcial”, mas também sinal de pressão política
No mesmo dia, a Câmara decidiu não cassar o mandato de Glauber Braga, acusado de agressão ao militante do MBL Gabriel Costenaro, optando por suspensão de seis meses.
A articulação foi construída no plenário, com apoio decisivo de setores do Centrão e emenda apresentada pelo PT. O PCdoB assumiu linha de defesa firme, argumentando que cassação seria pena desproporcional e violaria direitos políticos fundamentais.
Orlando Silva (PCdoB-SP) comemorou a virada: “Glauber fica! Impedimos uma violência contra as prerrogativas parlamentares e contra o voto popular. Cassação é pena capital. O plenário reconheceu que não havia maioria para essa desproporção.”
O deputado Renildo Calheiros (PCdoB-PE) parabenizou Glauber pelo resultado: “A perda do mandato dele seria uma das maiores injustiças cometidas pela Câmara dos Deputados. Então nós estamos aqui com o deputado Glauber, que foi o personagem central dessa grande vitória, dessa grande conquista, e a Câmara dos Deputados, assim, deu uma demonstração de altivez, de valentia, numa solução que surgiu no próprio plenário.”
Márcio Jerry (PCdoB-MA) reforçou a posição: “Suspenso por 6 meses, mas com o mandato garantido. Nas atuais circunstâncias, uma grande vitória.”
Para os deputados do PCdoB, o caso de Glauber expôs outra face da seletividade. Enquanto Zambelli, condenada criminalmente e foragida à época, manteve o mandato, Braga — que não enfrenta ação penal nem perda de direitos políticos — esteve a um passo da cassação.
Duplo padrão: comparação revela critério político, não jurídico
A comparação entre os dois casos evidencia incongruências:
1. Natureza das condutas
- Zambelli: condenação penal definitiva por invasão de sistemas do CNJ, tentativa de produzir mandado falso contra ministro do STF, risco institucional direto.
- Glauber: confronto físico em contexto de provocação reiterada; caso avaliado como quebra de decoro, não crime.
2. Situação jurídica
- Zambelli: sem direitos políticos, presa no exterior, condenação em regime fechado.
- Glauber: mandato em pleno exercício, sem impedimento legal.
3. Atores e interesses em jogo
- Zambelli: forte blindagem da bancada do PL e da extrema direita, movida por solidariedade política e temor de precedentes.
- Glauber: alvo recorrente da direita e de setores do próprio parlamento, por seu estilo combativo e críticas à lógica das emendas.
4. Decisões da Câmara
- Zambelli: plenário ignora determinação do STF e recomendações técnicas da própria CCJ.
- Glauber: plenário suaviza punição, mas mantém caráter disciplinar, após pressão e negociação política.
Para Jandira Feghali, a escolha evidencia que a Casa optou por “julgar o que é político e não o que é constitucional”.
Tensões entre Poderes: impactos institucionais
A recusa da cassação de Zambelli abre novo atrito entre Câmara e STF. O PT já anunciou que recorrerá por meio de mandado de segurança. A tendência é que o Supremo precise deliberar sobre:
- a validade da votação,
- o cumprimento obrigatório da perda automática do mandato,
- e a responsabilidade da Mesa em formalizar o ato.
No caso Glauber, a Câmara reforçou sua autonomia disciplinar, mas sob forte influência da conjuntura política e de articulações de plenário.
Pressão social e credibilidade parlamentar
As duas decisões acontecem em meio a desgaste institucional, críticas à seletividade e pressão crescente sobre a integridade do processo legislativo. O contraste é sintomático de um parlamento que:
- alivia punições para aliados da extrema direita,
- endurece contra parlamentares progressistas,
- e ignora parâmetros constitucionais quando convém à maioria circunstancial.
Dois pesos, duas medidas — e uma crise de coerência institucional
A sessão desta quarta expôs uma fissura fundamental no parlamento: a aplicação desigual da Constituição, condicionada a interesses de bancadas e à dinâmica política, e não ao rigor jurídico.
A manutenção do mandato de Zambelli simboliza uma capitulação institucional; a sobrevivência de Glauber, por sua vez, uma vitória defensiva, arrancada pela mobilização política e pelo peso do voto popular.
O episódio abre mais um capítulo na tensão entre Legislativo e Judiciário — e reforça o debate sobre a necessidade de critérios transparentes, coerentes e republicanos para proteger a democracia e a integridade dos mandatos parlamentares.