A discussão sobre o aborto é um tema complexo e controverso em todo o mundo. Cada país tem suas próprias leis e regulamentações, influenciadas por fatores culturais, religiosos e políticos. Recentemente, o Projeto de Lei 1904/2024, em tramitação no Brasil, reacendeu o debate ao propor a equiparação do aborto acima de 22 semanas ao crime de homicídio, com penas severas. Este cenário contrasta com uma tendência global de liberalização das leis sobre o aborto, destacada por especialistas e organizações internacionais.
De acordo com o Centro de Direitos Reprodutivos, organização global de direitos humanos, há uma tendência global de liberalização das leis sobre o aborto. Seis em cada dez mulheres no mundo vivem em países onde o aborto é amplamente legal. Nas últimas três décadas, mais de 60 países flexibilizaram suas leis sobre o procedimento, seguindo a orientação da Organização Mundial de Saúde, que recomenda a revisão das leis criminais para proteção à saúde das mulheres.
Débora Diniz, antropóloga, destaca essa tendência: “Países que criminalizavam integralmente o aborto há pouco mais de uma década, como a Colômbia, revisaram suas legislações. A Argentina e o Uruguai também descriminalizaram o aborto. O Brasil está na contramão do que a Organização Mundial de Saúde compreende como uma necessidade de revisar as leis criminais para proteção à saúde.”
Apenas quatro países reverteram a legalidade do aborto recentemente: Estados Unidos, El Salvador, Nicarágua e Polônia. Por outro lado, 77 países, onde vivem cerca de 662 milhões de mulheres, permitem o aborto mediante a vontade da mulher. Esse número representa 34% do total de mulheres em idade reprodutiva em todo o mundo. O limite gestacional varia de acordo com a casa situação, mas geralmente o aborto é permitido até 12 semanas de gravidez. Exceções ocorrem quando a saúde ou a vida da grávida está em risco ou em casos de gravidez resultante de estupro.
Aborto por razões socioeconômicas
Cerca de 457 milhões (23%) de mulheres em idade reprodutiva vivem em 12 países onde o aborto é permitido por razões socioeconômicas, incluindo idade, status econômico e estado civil da gestante. Países nesta categoria também permitem o aborto em casos de estupro ou incesto, ou em alguns diagnósticos fetais. Exemplos incluem Japão, Índia e Reino Unido.
Aborto por motivos de saúde
A realização do aborto por motivos de saúde é permitida em 47 países, onde vivem 226 milhões (12%) de mulheres. Vinte países permitem explicitamente o aborto para preservar a saúde mental da gestante, como Bolívia, Angola e Gana.
Segundo levantamento da organização, o Brasil está na categoria de países que permite o aborto para salvar a vida da gestante. Um total de 44 nações, onde vivem cerca 416 milhões (20%) de mulheres em idade reprodutiva, compartilham essa legislação, incluindo Chile, Venezuela, Paraguai, Síria, Irã, Afeganistão, Nigéria e Indonésia.
Proibições totais
Em contraste, alguns países proíbem totalmente o aborto, independentemente das circunstâncias. Este é o caso de 21 países, onde 111 milhões (6%) de mulheres em idade reprodutiva residem, incluindo Nicarágua, Honduras, Suriname, República Dominicana, Senegal, Egito, Madagascar e Filipinas. Nestes países, a legislação não permite o aborto nem mesmo quando a vida ou a saúde da gestante está em risco. Estas são as leis de aborto mais restritivas do mundo.
Veja a situação do direito ao aborto em alguns países do mundo:
Estados Unidos
Em 2022, a Suprema Corte dos EUA, de maioria conservadora, derrubou a decisão Roe vs. Wade, permitindo que cada estado decida sobre a legalidade do aborto. A sentença gerou uma onda de proibições e estados como Texas, Oklahoma e South Dakota impuseram restrições severas, enquanto a maioria dos estados ainda permite o procedimento.
França
Em resposta à reversão da decisão Roe vs. Wade nos EUA, a França incluiu o direito ao aborto em sua Constituição em março de 2024. O presidente Emmanuel Macron reforçou o compromisso de proteger esse direito: “Esse direito recuou nos Estados Unidos. Então nada nos impedia de pensar que a França estaria isenta desse risco”. A Lei Simone Veil permite que as mulheres abortem até a 14ª semana de gestação.
Israel
Surpreendentemente, Israel, frequentemente visto como conservador, possui uma das legislações mais progressistas sobre o aborto. Desde 1977, a interrupção da gravidez é permitida em diversas situações, como em casos de gravidez de menores de idade ou mulheres acima de 40 anos, gravidez fora do casamento, incesto, má-formação fetal ou risco à vida da mãe.
Daniela Kresch, jornalista, colaboradora do Instituto Brasil-Israel (IBI) e residente israelense, explica que “a Israel verdadeira não é uma teocracia conservadora, mas uma democracia liberal e, acima de tudo, diversa. O aborto é uma realidade, de modo que o assunto nunca foi muito polêmico. Segundo a Lei Básica de Israel, o aborto é ilegal. Contudo, qualquer mulher que se encaixe em casos específicos pode suspender a gravidez quando quiser, mesmo depois de 24ª semana, e de graça em clínicas e hospitais dos quatro planos de saúde do país ou em clínicas privadas.”
Espanha e outros países
Em 2023, a Espanha ampliou o direito ao aborto, permitindo que jovens de 16 e 17 anos abortem sem a autorização dos pais. O aborto é permitido até as 22 semanas de gestação. Outros países com legislação semelhante incluem:
- Alemanha: Permite o aborto em todos os casos até a 14ª semana de gestação.
- Japão: Permite aborto em casos de estupro, com avaliação econômica e social.
- Índia: Permite aborto em casos de estupro, risco à vida da mãe ou má-formação fetal até a 24ª semana de gestação.
- Reino Unido: Permite o aborto em casos de risco à vida da mãe ou má-formação fetal.
- Itália: Permite o aborto em todos os casos até a 12ª semana de gestação. Autorização dos pais é necessária em caso de menores de idade.
- Canadá: Permite o aborto em todos os casos.
- Argentina: Desde 2021, permite o aborto em todos os casos até a 14ª semana de gestação.
- China: Permite o aborto em casos de má-formação fetal.
- Portugal: O limite é de 10 semanas para aborto sem necessidade de justificativa, estendendo-se para 16 semanas em caso de estupro e 24 semanas para malformação fetal.
- Uruguai: Legalizou o aborto em 2012 até a 12ª semana de gestação.
- Colômbia: Legalizou o aborto em 2022 até a 24ª semana de gestação.
- México: O status legal varia de acordo com a lei de cada estado.
A legislação sobre o aborto varia significativamente entre os países, refletindo um mosaico de abordagens e visões. Enquanto alguns países avançam na liberalização das leis, outros retrocedem, impondo restrições severas. O Brasil, com o “PL do Estuprador”, como ficou conhecido, encontra-se em um ponto de inflexão, debatendo entre a criminalização e a saúde pública. A experiência internacional mostra que a descriminalização pode levar à diminuição dos casos de aborto, ao oferecer um ambiente seguro e menos estigmatizado para as mulheres.