Nos EUA, um time de basquete chamado Harlem Globetrotters joga com adversários contratados para servirem de “escada” para a performance, ou seja, a partida é “arranjada” e os HGs sempre vencem. O público, não só o estadunidense, gosta muito… Mas já gostou mais, muito mais. Afinal, a repetição ano a ano de, basicamente, um só roteiro final, mesmo que com variantes, acaba cansando.

Assim como as “eletrizantes” vitórias dos Harlem Globetrotters, as eleições nos EUA são espetáculos midiáticos que guardam pouca relação com uma democracia digna deste nome. No fim, ao distinto público resta escolher, como ocorre há mais de 150 anos, entre um candidato Republicano e outro candidato Democrata, sendo que um deles obedece a um grupo de milionários e o outro é fiel a outro grupo de milionários, grupos estes separados por filigranas políticas, que muitas vezes assumem contornos agressivos, mas no fundo unidos em torno do ideal de preservar o sistema em sua essência.

Tudo é feito, é claro, com elevada técnica de propaganda em torno da “democracia” americana. Segundo levantamento da organização estadunidense “Center for Responsive Politics”, as campanhas de Biden e Trump em 2020 gastaram nada menos do que 14 bilhões de dólares, boa parte em anúncios de TV.

Mas o público parece exausto. Pesquisa feita em janeiro pela Reuters/Ipsos e noticiada pela CNN aponta que cerca de 67% dos eleitores dos EUA estão “cansados de ver os mesmos candidatos nas eleições presidenciais”.

O constrangedor debate presidencial desta quinta-feira (27) entre o atual presidente Joe Biden e o ex-presidente Donald Trump é revelador do tamanho da crise política e moral que envolve os EUA, sintoma de uma decadência que assume ares de fenômeno irreversível.

De um lado um mentiroso patológico e neofascista, chamado Donald Trump, que durante o debate acusou Biden de defender o infanticídio, disse que os imigrantes são criminosos, justificou os vândalos que atacaram o Capitólio em 6 de janeiro de 2021, entre outros absurdos.

Do outro lado, um inepto Joe Biden, que tenta disfarçar – por meio de um verniz civilizado e do desfraldar de algumas poucas bandeiras corretas – toda a violência de um imperialismo que mata na Palestina, promove golpes ao redor do mundo e financia neonazistas na Ucrânia.

O resultado do debate foi um completo desastre para Joe Biden. Confuso, hesitante e gaguejante, Biden foi massacrado por Donald Trump. Segundo a agência britânica Reuters, “um doador de Biden, que pediu anonimato para falar livremente sobre o presidente, chamou seu desempenho de ‘desqualificante’ e previu que alguns democratas reiterariam os apelos para que Biden desistisse em favor de outro candidato antes da convenção nacional do partido em agosto. Democratas em pânico trocaram mensagens perguntando se Biden consideraria desistir. Um estrategista sênior democrata disse que seria inédito um candidato desistir tão tarde no ciclo eleitoral, mas que haveria apelos para que Biden fizesse exatamente isso.”

Faltando mais de quatro meses para a eleição (uma eternidade em termos políticos) é muito difícil qualquer previsão, mas que Trump é, atualmente, o favorito, disso não se pode duvidar.

Esse favoritismo levanta o seguinte dilema para os povos do mundo: a vitória de Trump pode mergulhar os EUA em uma crise ainda maior de legitimidade e liderança, acelerando seu declínio, o que afinal seria, em termos de perspectiva histórica, uma boa notícia. Por outro lado, uma vitória trumpista quase certamente levaria a um fortalecimento extremamente perigoso da extrema-direita neofascista no mundo, na América Latina e especificamente no Brasil.

Sobre este dilema, seria importante acompanhar a reação dos trabalhadores e da esquerda americana. Como mostram os recentes protestos em defesa da Palestina nas Universidades, a fatia mais combativa e lúcida dos progressistas está crescendo em influência, embora ainda pareça estar longe de representar uma opção visível na luta política. A Reuters constata que “nenhum dos candidatos é popular, e as pesquisas mostram que muitos americanos estão insatisfeitos com suas opções. O país está profundamente polarizado, e a maioria dos eleitores expressou preocupação de que a violência política possa estourar depois da eleição”.

Ao mesmo tempo em que não se pode subestimar o neofascismo representado por Donald Trump, esquecer que a extrema-direita é um instrumento a serviço do imperialismo tradicional representado por Biden poderia levar a leituras equivocadas.

Existe uma política bipartidária nos EUA, que por enquanto ainda é amplamente majoritária no chamado “Estado Profundo”, que encara a manutenção da hegemonia estadunidense principalmente em termos bélicos. Não à toa, em 2023 o mundo assistiu o investimento em arsenais miliares crescer em mais de 11 bilhões de dólares em comparação com 2022, sendo os EUA responsável por 80% deste crescimento, de acordo com dados da Campanha Internacional para a Abolição das Armas Nucleares (Ican). Ano a ano, os EUA batem recordes de investimento na indústria armamentista. Foi assim no mandato de Trump e continuou com Biden. O Instituto Internacional para Estudos da Paz de Estocolmo (SIPRI) revelou que em 2023 os EUA gastaram mais em armas para a guerra do que China, Rússia, Índia, Arábia Saudita, Reino Unido, Alemanha, Ucrânia, França e Japão, SOMADOS.

Ou seja, independentemente de quem vença as eleições nos EUA em novembro nos cabe a denúncia do imperialismo, a defesa da paz mundial, da soberania nacional e a solidariedade aos povos em luta, incluindo, talvez com relevância inédita, a solidariedade ao povo estadunidense na busca por romper com sua plutocracia carcomida.

“O poeta é um fingidor / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente. / E os que leem o que escreve, / Na dor lida sentem bem, / Não as duas que ele teve, / Mas só a que eles não têm. / E assim nas calhas de roda / Gira, a entreter a razão, / Esse comboio de corda / Que se chama coração.”

Poema “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa.

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Last Update: 01/07/2024