O número de denúncias de violações de direitos contra a população de rua no Brasil, por meio do canal Disque 100, do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, aumentou 24% no ano passado. “Temos observado a alta não só de tentativas de deslocamento forçado, mas da violência no ­País inteiro”, afirma Maria Luiza Gama, diretora de Promoção de Direitos da População de Rua da pasta. A tendência é de um crescimento ainda maior do índice neste ano. As denúncias dizem respeito principalmente à violência institucional, ou seja, praticada pelo Poder Público. “Muitos municípios não sabem o que fazer com as pessoas em situação de rua e se aproveitam da onda conservadora e de uma narrativa social de criminalização para adotar políticas truculentas que não funcionam”, acrescenta. Os estados de São Paulo e Santa Catarina lideram o ranking.

A prática de deslocamento forçado, ou de esconder a população de rua da paisagem urbana, é antiga. A novidade é que muitos prefeitos e secretários bolsonaristas, principalmente do PL e do PSD, perderam o pudor e agora publicam vídeos dessas diligências. O roteiro é semelhante: aparecem acompanhados da polícia, abordam moradores de rua e os coagem a aceitar internação, supostos empregos ou uma passagem de volta à região de origem. A oferta em si não é o problema, faz parte do protocolo de assistência. O problema é a espetacularização e a truculência. O Ministério dos Direitos Humanos acompanha o fenômeno com preocupação. “Esses vídeos referendam a violência institucional”, avalia Gama.

Em Santa Catarina, as abordagens viraram modus operandi, como se tirados de uma cartilha. O prefeito de Blumenau, Egídio Ferrari, filiado ao PL, tem feito inúmeras diligências filmadas e divulgadas nas redes sociais. “Aqui não vai ficar, vamos passar toda semana, três vezes por semana se for preciso, mas aqui não.” O prefeito de Chapecó, João Rodrigues, do PSD, anunciou recentemente um novo local de acolhimento. “Vai ficar bem longe da cidade, uns 10 quilômetros, porque ninguém aguenta mais essa situação.” A assessoria de imprensa de Blumenau diz que a prefeitura tem parceria para atender a população e em nenhum momento menciona o envio a outros municípios, apesar das ameaças do prefeito. A administração de Chapecó não respondeu aos pedidos de esclarecimento.

As abordagens aumentaram em Santa Catarina e São Paulo

“Internação compulsória. A partir de agora, em Balneário Camboriú, o dependente químico de rua poderá ser internado voluntária ou involuntariamente”, anuncia a prefeita Juliana Pavan, do PSD, no Instagram. O secretário de Assistência Social, Omar Tomalih, alega que as incursões da prefeita “não são uma política” da pasta. Segundo ele, a cidade acaba de lançar um novo programa de acolhimento, cujo objetivo é prestar atendimento aos dependentes.

O secretário de Assistência Social de Florianópolis, Bruno Souza, do PL, aparece em dezenas de vídeos constrangendo moradores de rua. Souza chega a abordá-los para perguntar como a esmola recolhida nas esquinas será gasta. Poucas semanas depois de assumir a pasta, o secretário fechou o Restaurante Popular e desmobilizou a equipe de Resgate Social da cidade. Diante das ações consideradas “problemáticas”, o ministério enviou um ofício para exigir retratação e solicitar a volta dos serviços. O secretário municipal desdenhou. Gravou um vídeo no qual afirmava ter sido pressionado por “esquerdistas” a se retratar. Na sequência, foi a um estúdio fotográfico, fez um retrato, o emoldurou e despachou via Correios para o ministério. “Um deboche sem precedentes”, indigna-se Gama.

Outro caso foi protagonizado em abril por Doutor Serginho, do PL, prefeito de Cabo Frio, litoral do Rio de Janeiro. Um ônibus fretado pela prefeitura enviou 12 moradores de rua para Linhares, no Espírito Santo, com a proposta de trabalho na colheita de café. Dias depois, seis decidiram voltar. Diante da repercussão negativa, o prefeito gravou um vídeo para explicar o imbróglio, e colocou a culpa nos próprios despachados. “Dois deles, que já tinham trabalhado na colheita de café, convenceram os outros dez a ir para Linhares. Para a prefeitura, sairia mais barato fretar um ônibus do que dar as passagens individuais.”

Afronta. Após fechar o restaurante popular, o secretário Souza enviou uma foto ao Ministério dos Direitos Humanos como resposta a um ofício – Imagem: Redes Sociais e Júlia Magalhães/Prefeitura de Florianópolis

O vice-prefeito da capital paulista, Ricardo Mello Araújo, do PL, é outro entusiasta das abordagens filmadas e publicadas nas redes sociais. “Quem quer emprego aí?”, “Se eu te der uma passagem agora, para voltar para a sua cidade, você aceita?”. Edson Rodrigues, que ficava nas ruas da Mooca, depois de cercado por Araújo, foi enviado para o Hub de Cuidados em Crack e Outras Drogas. O atendimento demorou horas e ele não aguentou esperar por estar faminto. “Cheguei lá era umas 10 horas, quando foi 5 da tarde eu fugi, porque só iam dar comida depois da triagem.” Cíntia Sanches, integrante da Pastoral do Povo de Rua, coordenada pelo padre Júlio ­Lancellotti, diz que não se trata de um caso isolado. “Aqui chegam muitos relatos de gente que passa horas no hub sem atendimento, quem surta é colocado em uma van e levado para outros lugares.” Há relatos de despachos para Guarulhos, Ferraz de Vasconcellos e Diadema, entre outras. Há ainda denúncias de tortura. “Separam uns dos outros, para não ter testemunhas, e fazem horrores. A polícia coloca o cano da arma de fogo na boca, ameaçam de morte, e dá duas opções: ou aceita internação ou some”, descreve Lancellotti. As queixas chegaram ao ministério, que iniciou uma investigação.

Esse tipo de abordagem levantou suspeitas sobre as causas do recente “sumiço” da Cracolândia do Centro da capital paulista. Gama atribui o fenômeno a um “processo de especulação imobiliária na região, onde o governador Tarcísio de Freitas quer instalar a nova sede do governo”. Após reunião com a Defensoria Pública e o Ministério Público Federal, o promotor de Justiça da Saúde Pública de São Paulo, Arthur Pinto Filho, afirma que “o sumiço da Cracolândia tem acontecido por conta de internações em massa”. Em abril, foram 852, das quais 520 em hospitais psiquiátricos e as demais em comunidades terapêuticas. “Em maio, esse processo está ainda mais avançado.”

CartaCapital visitou a Praça Santos Dumont, em Guarulhos, onde supostamente alguns moradores de rua foram despejados. Claudete Silva Souza, dona de um bar e padaria, afirma que desde dezembro tem chegado gente nova na região. “Não sei como eles vêm parar aqui. Mas o pessoal da Assistência Social andou por aí e agora não tem mais ninguém.” Nas áreas de consumo de drogas, a chegada dos novatos gerou tensão. “Povo folgado. Grandes coisas que é da Cracolândia”, reclama Ceará, veterano na praça. Em um terreno baldio cercado por um muro baixo, cinco usuários tentavam se esconder da polícia, enquanto fumavam farelo de crack. Henrique, com roupas limpas e barba feita, destoa­va do grupo e nem parecia ter 20 anos de rua e de dependência química. “Faz uns meses, chegaram umas vans de madrugada. De repente tinha um monte de gente nova aí. Mas agora sumiram, dizem que uns foram levados lá pro Morro do Amor.” Elizabeth, que consome há quase 30 anos, confirma o relato. “Era um povo bonito, gente da capital, né”, diz com os olhos azuis brilhantes.

Na capital paulista, o vice-prefeito Mello Araújo divulga suas rondas nas redes sociais

Apesar de inúmeras tentativas de contato, a prefeitura de Guarulhos preferiu não comentar o caso. O vice-prefeito paulistano Mello Araújo afirmou que gosta de fazer as diligências para se inteirar da realidade da cidade por conta própria. “Metade do tempo fico no gabinete e na outra metade vou para a rua para identificar os problemas.” Ele atribui o aumento da população de rua na capital ao “excesso de assistencialismo e políticas erradas do governo federal”. “A inflação alta e o desemprego fazem muita gente perder tudo, e elas acabam vindo para São Paulo buscar uma oportunidade”, avalia. De acordo com ele, por mais que a prefeitura amplie os serviços de atendimento, “a conta não fecha”.

O Centro de Apoio ao Trabalho e Empreendedorismo paulista informou que neste ano foram atendidos mais de 500 cidadãos pelo Cate Móvel, dos quais 461 foram encaminhados para vagas de emprego, e 46 aprovados em processos seletivos. Em nota, a prefeitura de Diadema informou que, “até o momento, não há registros oficiais ou evidências concretas de que a prefeitura de São Paulo esteja promovendo o deslocamento sistemático de pessoas em situação de rua para Diadema”. A prefeitura de Ferraz de Vasconcelos não se manifestou. •

Publicado na edição n° 1364 de CartaCapital, em 04 de junho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Dê um like no higienismo’

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 29/05/2025