VERME! O grito infantil que ecoou pela janela do ônibus atingiu Luiz Silva como bala. Parado em uma avenida de São Paulo, em seu uniforme azul-ferrete, ainda mantinha a mão erguida num aceno incompleto quando ouviu o xingamento que o marcaria para sempre. Naquele momento, algumas certezas dentro dele se quebraram.
“Aquilo me destruiu. Entendi que, para aquela criança, eu era o inimigo. Um verme mesmo, sem nenhuma romantização.”
A ofensa, que hoje dá nome ao seu espetáculo teatral, resume a transformação do ex-policial: do jovem idealista que sonhava em ser um ‘herói’ ao homem que, após os anos de farda, aprendeu a exorcizar nos palcos seus demônios.
Nascido em Santos, no litoral de São Paulo, Luiz herdou do avô e do irmão mais velho a vocação para a carreira militar; primeiro, serviu na Aeronáutica, entre 2005 a 2009, ainda na cidade natal. Um ano depois, já em São Paulo, ingressou na PM, onde permaneceria de 2010 a 2013, durante os governos de José Serra e Geraldo Alckmin.
O processo de desumanização começou no primeiro dia de academia. “Você perde o seu nome e passa a ser identificado por um número. Eu era o 030”, relembra. Os meses seguintes foram preenchidos por castigos físicos e humilhações. “Por qualquer pequena transgressão, como andar quando deveria correr, você tinha que dar dez voltas no Batalhão gritando ‘Eu sou bizonho!’.”
A formação de soldados na PM dura, ao todo, dois anos, contendo seis meses de curso básico e mais seis meses de formação específica em delegacias. “Na escola, nos colocam muito medo. Mostram vídeos de policiais morrendo por falhas táticas, é uma ideologia perversa”, lamenta. “Nos diziam: ‘Antes a mãe do ladrão chorar do que a sua’.”
Depois, há mais um ano de estágio supervisionado, já nas ruas – onde a decepção se agravou ainda mais diante de outra paixão de Luiz: o teatro, que o então PM tentava levar em paralelo.
“Tive vontade de matar”
No 3º Batalhão da PM, zona sul da capital, Silva patrulhava do Jabaquara até a divisa com Diadema, área que abrange cerca de 40 favelas. Já em sua primeira saída, a realidade mostrou as garras. Silva conduzia uma viatura ao lado de um superior. Ao avistar dois jovens em uma moto sem capacetes, tentou bloqueá-los, mas eles fugiram. O parceiro sacou a arma e efetuou três disparos.
“Naquele momento, entendi que aquele seria meu cotidiano, convivendo com cenas assim”, desabafa. “O certo teria sido eu dar voz de prisão ao outro policial, mas ele era meu superior, e eu não tinha a clareza de hoje.”
Com o tempo, porém, a brutalidade se tornou rotina. “Nesses três anos, fui me transformando em uma pessoa mais fria. No final, tive vontade de matar. Eu queria uma ‘derrubada’”, confessa, usando o eufemismo policial para operações letais. Entre os batalhões, era comum a disputa por números: quem conseguia mais flagrantes ou mais mortes.
O impacto emocional não demorou a chegar. “Eu chorava no banheiro, já não aguentava mais. Hoje eu vejo o quão equivocado eu estive. Eu fui ficando sequelado, só que não percebia. De folga, cheguei a apontar a arma para pessoas que eu considerava suspeitas, com risco de atirar”.