O livro “Entre Oligarquias: as origens da República Brasileira (1870-1920”, de Rodrigo Goyena Soares, é um belo levantamento sobre a herança escravagista brasileira (Rodrigo Goyena Soares. Entre oligarquias: as origens da República Brasileira (1870-1920), de 2024). E mostra semelhanças enormes entre a geração de 1870 e a geração de 2025. O meu “Cabeças de Planilha” acrescenta outros pontos de semelhança.
Naqueles tempos, estava em vigor o “regime do padroado” que permitia ao Império construir templos e arcar com sacerdotes e bispados. No Brasil atual vigora o poder dos Evangélicos, substituindo o da Igreja, ambos com ampla isenção tributária.
Direitos sociais avançavam lentamente. Foi aprovada uma lei que suprimia castigos corporais, mas substituída pelo recrutamento forçado e aleatório pelo serviço militar obrigatório. Havia sorteios para todos os homens entre 19 e 25 anos. Mas ficavam de fora os bacharéis, os proprietários, os administradores de fábricas e os feitores de fazendas.
Em janeiro de 1878, beneficiado pela morte de Zacarias de Góis e Vasconcelos, o grande líder de oposição à coroa, subiu ao poder José Lins Vieira Cansanção de Sinimbu, um alagoano moderado.

Em pouco tempo foi emparedado pela dívida pública e cedeu ao mesmo dilema atual: a necessidade do lançamento de títulos amarrados ao câmbio, um novo empréstimo nacional, que prometia pagamento em libras esterlinas ou o equivalente em mil-réis, conforme a cotação do câmbio, recorrendo ao investidor externo. Era o grande negócio do financiamento externo, que fazia a festa na banca londrina.
Mas, assim como Fernando Haddad, Sinimbu teve a ousadia de pretender taxar os mais ricos. Planejou um imposto territorial, visando a venda de terras improdutivas, cujo objetivo final era promover indiretamente uma política de reforma agrária, em um momento em que se discutia a abolição.
O novo imposto não vingou. Foi substituído por uma taxa de 20 réis por metros quadrados em terrenos não identificados, um valor irrisório mas que, mesmo assim, foi revogado um ano depois.
A segunda tentativa foi a criação de um imposto de renda mais rigoroso, estendendo sobre a indústria e profissões – que, naquela época, não chegava a 3% da receita nacional.
Segundo o deputado pelo Maranhão, Fábio Alexandrino de Carvalho Reis, o “imposto sobre a renda [seria] o único racional, o único imposto em que se pode guardar melhor proporcionalidade, o único em que se pode evitar a repercussão sobre terceiros e, por conseguinte, o único imposto legítimo”. A intenção era taxar os grandes salários e poupar os pequenos. E, sendo direto, não implicaria em repasse para os preços.

Fracassou redondamente. O máximo que se conseguiu foi uma cobrança retida na fonte de 5% sobre proventos oriundos de empregos públicos. No ano seguinte, a taxa caiu para 2%.
Prosseguiu-se no jogo regressivo: baixos impostos sobre laudêmios e taxas sobre a propriedade de escravos, e aumento dos tributos na alfândega, recaindo sobre os consumidores. Finalmente, criou um imposto do vintém, sobre as tarifas cobradas nos bondes da Corte e seus subúrbios.
Aí foi demais. Em uma quadra da marginalização urbana das camadas populares, reformas urbanas no Rio de Janeiro, dividindo a cidade entre solares com iluminação pública e rede de esgotos, e sobrados e mocambos caindo aos pedaços na periferia, e “uma lógica de endividamento público que premiava com a venda de títulos as instituições financeiras em detrimento da massa populacional, que pagava o preço com tributos diretos e indiretos, quando as classes mais privilegiadas se negavam a fazê-lo”. E aí explodiu a revolta popular, com muito quebra-quebra.
E aí, assim como os black blocs defendidos pelo acadêmico Pablo Ortellado, policiais se infiltraram, ampliaram o quebra-quebra, e deram o álibi para as forças do exército entrarem pesado. A pressão para a revogação do imposto foi barrada pelo Ministro da Fazenda, conde Afonso Celso de Assis Figueiredo. Os abolicionistas entraram em cena, fortalecidos pelas manifestações populares, e a Proclamação da República virou uma possibilidade.

Agora, entram em cena minhas pesquisas para o livro “Os Cabeças de Planilha”.
Afonso Celso percebeu o grande negócio da dívida pública e propôs uma reforma monetária, que daria o monopólio de emissão de moeda a um banqueiro privado que, como contrapartida, utilizaria os recursos para redução da dívida pública.
Não conseguiu levar adiante, especialmente devido à férrea oposição de um jurista e tribuno baiano, Rui Barbosa, através da coluna que mantinha em um jornal carioca.
Proclamou-se a República. Graças à sua campanha contra Ouro Preto, Rui Barbosa foi nomeado Ministro da Fazenda. Antes mesmo de assumir, começou a trabalhar na reforma monetária, em quase tudo idêntica à de Afonso Celso. A única diferença era o banqueiro. O de Rui Barbosa era o Conselheiro Mayrink.
A reforma bancária de Rui Barbosa repassou ao Banco dos Estados Unidos do Brasil, de Mayrink, o poder de emissão. Rui autorizou a emissão de duas vezes e meio o estoque de moeda corrente. As emissões teriam lastro em títulos da dívida pública, e não em ouro.
Seguiu-se um dos períodos mais turbulentos da economia brasileira, conhecido como Encilhamento. Toda espécie de jogada especulativa, alimentada por Mayrink e beneficiando Rui Barbosa, que operava através de seu cunhado Carlito.
Ao mesmo tempo, Rui Barbosa liberava estados e municípios para contratarem dívida externa, beneficiando bancos londrinos próximos a ele.
A desordem era tão generalizada que permitiu a ascensão de Floriano Peixoto, cuja primeira medida foi ameaçar prender Rui Barbosa, que correu a se exilar na Inglaterra – mas com as contas forradas de dinheiro obtido em suas parcerias com Mayrink e com a banca inglesa.
E para mostrar que no Brasil tudo termina em samba, Rui Barbosa retornou em 1918, com a chamada campanha civilista, e com uma proposta de aprovar leis que acabassem com a farra de estados e municípios com a dívida externa.
É visto como um dos pais da pátria, “Águia de Haia”, “Pai da República”, “fundador do liberalismo jurídico brasileiro”, símbolo da ética republicana, da resistência ao autoritarismo e da liberdade de imprensa.
No meu livro, conto algumas de suas estripulias como advogado. É a comprovação cabal que o espírito de Macunaíma perpassava todas as classes sociais.
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