A aprovação da cassação do deputado Glauber Braga (PSOL-RJ) pelo Conselho de Ética da Câmara dos Deputados trouxe à tona uma realidade ignorada tanto pela esquerda quanto pela direita nacional: a de que os mandatos parlamentares no Brasil são facilmente revogáveis pelo regime político. Desde 1985, ano que marca o fim da ditadura militar (1964-1985), nada menos que 30 deputados federais e três senadores foram cassados.
As cassações foram realizadas diretamente pela Câmara dos Deputados ou pela Justiça Eleitoral — isto é, pelo próprio regime. Em nenhum caso, um mandato foi revogado pela vontade popular.
Não há, na Lei brasileira, nenhum mecanismo que preveja a cassação de mandato por consulta pública. Trata-se, portanto, de um regime antidemocrático, uma vez que permite que o próprio Estado casse aqueles que foram escolhidos pelo povo. É uma contradição com a própria Constituição Federal, uma vez que esta estabelece que:
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I – a soberania;
II – a cidadania;
III – a dignidade da pessoa humana;
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; (Vide Lei nº 13.874, de 2019)
V – o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”
A Lei diz que todo o poder emana do povo, “que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”. Se um parlamentar escolhido pelo povo não exerce o seu mandato, então o poder não emana do povo, mas sim do Estado.
Pelo seu caráter arbitrário e excepcional, a cassação de deputados é um mecanismo recorrente em crises políticas profundas. Isto é, um mecanismo utilizado nos momentos em que os poderosos não conseguem exercer a sua dominação por meio de um regime supostamente “democrático” e, portanto, partem para uma política mais abertamente autoritária. A história recente das cassações de parlamentares põe isso às claras.
No ano de 1987, teve posse a primeira legislatura após a ditadura militar. Naquele ano e no ano seguinte, o regime político procurava se apresentar como democrático, uma vez que estava se estabelecendo sobre uma ditadura marcada por dezenas de cassações. Em 1989, no entanto, o País voltou a entrar em uma grande crise política com o fracasso do governo de José Sarney. Entre 1989 e 1994, o Brasil passou por uma eleição profundamente polarizada, com o então líder operário Luiz Inácio Lula da Silva (PT) como franco favorito para as eleições presidenciais em decorrência, também, do desastre do governo de Fernando Collor de Mello e de seu impeachment. A burguesia só conseguiu uma estabilidade com o medonho Plano Real, que garantiu as eleições de Fernando Henrique Cardoso em 1994 e impôs uma grande derrota ao movimento operário.
Este período turbulento foi o que mais contou com cassações parlamentares na história recente do País.
Ainda na legislatura de 1987 a 1991, foram cassados os deputados Felipe Cheidde (PMDB-SP) e Mário Bouchardet (PMDB-MG), ambos por excesso de faltas. A cassação por faltas — um critério burocrático, puramente administrativo — já indica como a revogação de mandatos parlamentares pode ocorrer de forma totalmente alheia à vontade popular. Ambos os parlamentares foram substituídos por suplentes, como se nada tivesse acontecido com a representação popular conferida nas urnas.
A legislatura seguinte (1991-1995), ainda sob os escombros do governo Collor, foi ainda mais pródiga em cassações — e de caráter claramente político. O deputado Jabes Rabelo (PTB-RO) foi cassado por endossar documento parlamentar falsificado. Outros três deputados foram cassados por suposta “compra de filiação partidária”: Itsuo Takayama (PFL-MT), Nobel Moura (PTB-RO) e Onaireves Moura (PTB-PR).
A maior onda de cassações dessa legislatura, porém, veio com a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Orçamento, verdadeiro pretexto para uma “limpeza” dentro do Congresso Nacional. Foram atingidos Feres Nader (PTB-RJ), Carlos Benevides (PMDB-CE), Fábio Raunheitti (PTB-RJ), Raquel Cândido (PTB-RO) e o então presidente da Câmara, Ibsen Pinheiro (PMDB-RS).
No segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, ocorreram três cassações parlamentares: a do deputado Talvane Albuquerque (PFL-AL), eleito em 1998 e cassado em 7 de abril de 1999 por quebra de decoro parlamentar, acusado de envolvimento no assassinato da deputada Ceci Cunha; a do deputado Hildebrando Pascoal (PFL-AC), também eleito em 1998 e cassado em 22 de setembro de 1999 por envolvimento com o crime organizado; e a do senador Luiz Estevão (PMDB-DF), eleito em 1998 e cassado em 28 de junho de 2000, acusado de desviar R$170 milhões destinados à construção do Fórum Trabalhista de São Paulo.
Essas cassações coincidiram com um período de forte crise cambial no País. Em janeiro de 1999, o governo foi obrigado a abandonar o regime de câmbio fixo e permitir a flutuação do real, o que resultou em uma abrupta desvalorização da moeda e no disparo da inflação. Diante do agravamento da crise, a equipe econômica passou por uma reestruturação, com a saída de Gustavo Franco do comando do Banco Central e a nomeação de Armínio Fraga. Para conter os efeitos da instabilidade, o governo recorreu ao Fundo Monetário Internacional (FMI).
No primeiro mandato de Lula (2003–2006), diversos parlamentares foram cassados, em meio a uma instabilidade política provocada pela crise do chamado “mensalão”. Na época, partidos da base governista e setores do próprio regime político criaram um escândalo que teve como objetivo enfraquecer o núcleo dirigente do governo, especialmente o então ministro da Casa Civil, José Dirceu. Foram cassados Roberto Jefferson (PTB-RJ), delator do esquema; José Dirceu (PT-SP), então considerado o principal articulador político do governo; e Pedro Corrêa (PPB-PE), envolvido diretamente no escândalo. Também foram cassados nesse período os deputados Rogério Silva (PMDB-MT), André Luís (PMDB-RJ), Paulo Marinho (PFL-MA) e Ronivon Santiago (PPB-AC), ainda que nem todos ligados diretamente ao mensalão.
Após a cassação de Pedro Corrêa em 2006, o Brasil passou, pela primeira vez desde a “redemocratização”, um período de seis anos sem cassações de parlamentares. Tudo mudou, no entanto, em 2012, com a cassação de Demóstenes Torres (DEM).
A cassação do deputado foi motivada pela descoberta de sua ligação com o bicheiro Carlinhos Cachoeira, revelada pela Operação Monte Carlo da Polícia Federal. As investigações mostraram que Demóstenes Torres usava o mandato de senador para defender interesses privados de Cachoeira, o que configurou quebra de decoro parlamentar. Demóstenes era um opositor do governo e criticava recorrentemente o Partido dos Trabalhadores (PT) por causa do escândalo do “mensalão”. Sua cassação, portanto, acabou sendo apresentada como uma vitória para o governo.
No entanto, no mesmo ano, ocorreu o julgamento do “mensalão”, que condenou dirigentes do PT à cadeia e inaugurou uma nova etapa da situação política, na qual um golpe de Estado foi colocado em marcha.
Essa virada foi expressa também na retomada das cassações parlamentares, como nos casos dos deputados Natan Donadon e André Vargas, ambos cassados por quebra de decoro parlamentar.
Natan Donadon, eleito pelo PMDB de Rondônia, foi cassado em 12 de fevereiro de 2014, após ser condenado pelo Supremo Tribunal Federal por peculato e formação de quadrilha, crimes cometidos durante seu período como diretor financeiro da Assembleia Legislativa de Rondônia. Ele foi o primeiro deputado federal preso a exercer o mandato — mesmo após sua condenação, o plenário da Câmara havia se recusado, em 2013, a cassar seu mandato, mas a decisão foi revertida no ano seguinte diante da pressão da opinião pública.
Já André Vargas, eleito pelo PT do Paraná, foi cassado em 10 de dezembro de 2014, acusado de envolvimento com o doleiro Alberto Youssef, um dos principais delatores da Operação Lava Jato. A cassação de Vargas marcou a entrada da Lava Jato no parlamento, ampliando o poder da operação liderada por Sérgio Moro e reforçando o processo contra o PT e a esquerda em geral.
Essas cassações sinalizavam que o regime político já havia embarcado em uma nova fase: a de preparação de um golpe de Estado contra o governo eleito. Por trás das cassações, estava em curso a reorganização do regime em direção a uma forma cada vez mais autoritária, com o enfraquecimento do poder do Executivo e o fortalecimento do Judiciário como poder dirigente.
Em 2016, ocorreu o golpe de Estado que depôs a presidenta Dilma Rousseff por meio de um processo fraudulento de impeachment. Naquele ano, duas cassações importantes marcaram o avanço do regime autoritário: a primeira foi a do senador Delcídio do Amaral, e a segunda, a do deputado Eduardo Cunha. A cassação de Delcídio do Amaral, em 10 de maio, foi uma manobra para desgastar ainda mais o Partido dos Trabalhadores (PT). Embora já estivesse afastado do partido, sua vinculação anterior ao governo foi explorada como parte da ofensiva contra a esquerda. Já a cassação de Eduardo Cunha, ocorrida em 12 de setembro, representou a continuidade do golpe. Cunha foi sustentado no cargo enquanto era peça central na derrubada de Dilma. Após cumprir esse papel, foi descartado pelo próprio regime que ajudou a construir. Apesar de inimigo declarado do governo petista, Cunha representava também um setor da burguesia nacional que a Operação Lava Jato pretendia destruir, como parte de sua política de reestruturação do regime político sob hegemonia do Judiciário.
Durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), as cassações parlamentares voltaram a ganhar destaque, especialmente durante a pandemia de coronavírus, quando o grande capital intensificou a pressão sobre o governo federal. Nesse período de crise, a instabilidade institucional se agravou, e o regime passou a adotar medidas mais abertamente repressivas para tentar controlar os setores considerados indesejáveis — inclusive no interior da própria extrema direita. A maioria dos parlamentares cassados era ligada ao bolsonarismo.
Um dos casos mais importantes foi o da senadora Selma Arruda (PSL-MT), cassada em 15 de abril de 2020 por abuso de poder econômico e captação ilícita de recursos. Conhecida como “Moro de saias”, Selma havia se projetado como representante da ala lavajatista e bolsonarista do Senado. No mesmo ano, em 5 de novembro de 2020, o deputado Manuel Marcos (Republicanos-AC) também foi cassado por abuso de poder econômico e uso irregular do fundo eleitoral.
Já em 11 de agosto de 2021, a cassação da deputada Flordelis (PSD-RJ) — um escândalo de natureza penal envolvendo a acusação de assassinato do próprio marido — foi explorado pela imprensa, funcionando como peça de propaganda contra o bolsonarismo, com o objetivo de desgastar moralmente seus aliados.
No mesmo mês, em 24 de agosto, foi cassado o deputado Boca Aberta (PROS-PR). Por fim, em 17 de março de 2022, Valdevan Noventa (PL-SE) teve seu mandato cassado por supostas doações ilegais em sua campanha de 2018.
No atual governo Lula, duas cassações já aconteceram. Elas são, em grande medida, uma continuidade das cassações durante o governo Bolsonaro. São uma forma do regime político aumentar o controle sobre o parlamento, preparando uma ditadura que está cada dia mais expressa nas ações do Supremo Tribunal Federal (STF).
Em 2022, foram dois deputados cassados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE): Deltan Dallagnol (PODE) e Marcelo Lima (Solidariedade).