Economistas examinam com lupa as oportunidades para o avanço da indústria do Brasil em meio ao morde e assopra do tarifaço de Donald Trump e a partir do estreitamento das relações Brasil–China, em especial depois da viagem de Lula a Pequim em maio, mas o que se destaca, em um primeiro momento, é outra perspectiva. Sobressai, no cenário econômico, uma enorme aceleração da sempre temida primarização da economia, com consequências danosas ao País. Para piorar, a marcha à ré ocorre nos dois sentidos, isto é, com aumento da velocidade tanto da entrada de produtos industrializados chineses quanto das vendas de soja para a China, excelente em termos de receita cambial imediata, mas contraproducente se for considerado como consequência em termos de retrocesso relativo à indústria.

“Nosso padrão de comércio exterior com a China é muito assimétrico e lembra o modelo clássico centro–periferia, o que vem impulsionando a primarização da nossa economia”, ressalta Rafael Cagnin, economista-chefe do Instituto de Estudos do Desenvolvimento Industrial. “É um momento desafiador para a indústria brasileira. Vai sobrar produto barato chinês, o que afetará os segmentos mais competitivos, onde a importação é estratégica no País, ao mesmo tempo que, possivelmente, vai baratear insumos, partes e peças de segmentos que são exportadores, na indústria”, sublinha o economista José Augusto Gaspar Ruas, professor da Facamp.

Os dados do comércio sino-brasileiro ilustram o salto da reprimarização. A importação brasileira de produtos chineses disparou antes do tarifaço dos EUA, para 19 bilhões de reais no primeiro trimestre, aumento de 34,9% sobre o mesmo período do ano passado, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento, diante da elevação em 12,4% das vendas chinesas para o resto do mundo. Uma das principais causas da expansão da entrada de industrializados chineses foi a importação de “plataformas, embarcações e outras estruturas flutuantes”, que movimentou 2,7 bilhões de dólares, valor muito superior aos 4 milhões registrados em 2024.

O padrão de comércio exterior com a China é muito assimétrico

Os exemplos mais chamativos do movimento acima descritos são os registros de importação de automóveis chineses e de embarques de soja brasileiros anunciados na véspera da viagem de Lula para Pequim. A importação de carros explodiu, com algumas dezenas de milhares de unidades desembarcadas de navios gigantes aportados no País, enquanto o MDIC protela a tomada de posição sobre o pedido insistente da Anfavea, representante da indústria automotiva local, de aumento da tarifa de importação desses veículos. Em 2020, os carros chineses representavam apenas 2% do total de importados vendidos no Brasil. No início do ano passado, essa participação era quase dez vezes maior, de 19,5%. Em contrapartida, em apenas três dias, na segunda semana de abril, a China roubou do Brasil um volume de soja em grão equivalente ao que, antes do tarifaço, levaria um mês e meio para adquirir, com cerca de 40 navios negociados, que transportaram 2,5 milhões de toneladas.

A piora drástica dos termos de troca ocorre em um momento difícil da indústria brasileira, que, apesar do impulso da política industrial Nova Indústria Brasil, figura em último lugar em competitividade industrial na comparação feita pela CNI com 17 países concorrentes no mercado internacional. Aprisionada por excessos de restrições fiscais impostas pelo sistema financeiro, que limitam em muito a cooperação, pelo Estado, dos investimentos para atualização tecnológica do parque industrial e para a inovação, a indústria não teve tempo de se fortalecer para enfrentar a anunciada enxurrada de industrializados chineses. “O que aconteceu em 2024 foi um crescimento da indústria e, mais, da indústria não extrativa, inclusive automobilística e de bens de capital, que indica uma conjuntura positiva que afeta o mercado de trabalho e uma série de outras esferas”, sublinha Ruas. “Esse avanço consiste, basicamente, em ocupação de uma capacidade ociosa com algum crescimento de investimento, mas o patamar é muito baixo, comparado com qualquer país e mesmo com o próprio Brasil, no governo Lula e antes, no período de maior desenvolvimento da indústria.”

Para os Estados Unidos, o Brasil exporta fabricados e a competitividade relativa desses produtos no mercado norte-americano com o produto chinês, e asiático, pós-tarifaço, melhorou, abrindo oportunidades, aponta Cagnin. “Temos quase 3 mil produtos similares, que nós e a China exportamos para os EUA, cujas exportações podem vir a se beneficiar, ainda que não de forma automática e imediata, no caso de fabricados”, destaca o economista do Iedi. A China, ao contrário do Brasil e da maior parte dos paí­ses, conseguiu antecipar-se ao tarifaço e desde o ano passado oferece condições comerciais e financeiras excelentes aos importadores do mundo afora para compensar as restrições previsíveis às nações dos Estados Unidos, em cerca de 450 bilhões de dólares anuais.

Vazão. A indústria chinesa passou a aplicar descontos em seus produtos para suprir a limitação de acesso aos EUA – Imagem: STR/AFP

Os entraves ao comércio mundial, impostos pela guerra tarifária, ressaltam as profundas dificuldades da indústria brasileira. Um estudo do Iedi sobre a evolução do Índice de Complexidade Econômica do País entre 1995 e 2021, último dado disponível, mostra uma piora “significativa e persistente”. Em 1995, o Brasil ocupava a 25ª posição do ranking mundial de complexidade e, em 2021, despencou para a 70ª posição. Argentina, Chile, Colômbia e Paraguai também perderam posições entre 1995 e 2021, mas de forma bem menos intensa que o Brasil.

Em contrapartida, a China foi um dos países que mais ganharam posições no ranking de complexidade no mesmo período. Avançou continuamente a partir de 1995, subindo da 46ª posição para a 18ª em 2014. “A diferença de trajetória entre Brasil e China no ranking da complexidade deve-se à reprimarização de nossa pauta exportadora, em boa medida devido à própria demanda chinesa, que também impulsionou os preços internacionais de commodities”, aponta o estudo do Iedi.

No período analisado pelo estudo, considerando a composição das exportações brasileiras de bens, a participação de produtos minerais e agrícolas, que era muito alta em 2014, de 54,3%, aumentou para 65,2% em 2021. Os recuos mais significativos do País ocorreram em produtos de maior intensidade tecnológica, mais elaborados, caso de veículos (de 5,9% para 3,6%), máquinas (de 4,6% para 3,6%) e produtos químicos (de 6,4% para 5%).

O Brasil está em último lugar em competitividade industrial, diz a CNI

Para o mercado chinês, nossas exportações se concentram em apenas três produtos: minério de ferro, soja e petróleo cru, tanto em 2014 quanto em 2021, representando juntos quase 80% do total exportado para este país. Em contrapartida, a pauta de exportação de bens da China é mais diversificada e os produtos fabricados mais elaborados têm uma presença maior do que no Brasil. Entre 2014 e 2021, houve um aumento dessa participação e o conjunto dos dois principais produtos, eletrônicos e máquinas, avançando de 44%, em 2014, para 47,2% da pauta exportadora chinesa.

Ao apresentar uma pauta de exportação mais diversificada e mais intensiva em produtos fabricados, descreve o trabalho do Iedi, a China possui “espaços de produtos maiores e mais densos, aumentando a possibilidade de produzir novos bens e de ampliar a sua complexidade”. Em 2021, o país apresentou 391 produtos com vantagens comparativas reveladas, mais que o triplo do Brasil, que somava 124.

O ambiente macroeconômico desfavorável, com taxas de câmbio não competitivas e assustadoras, taxas de juro altas e condições adversas à modernização e à constituição de capacidades tecnológicas e inovadoras, tornou a indústria brasileira “mais vulnerável ao acirramento da concorrência chinesa no mercado internacional”, ressalta o ­Iedi. Cabe acrescentar que, nesse processo, teve peso determinante, na década de 1980, a abertura indiscriminada do mercado interno e a elevação da taxa de juros a patamares estratosféricos. •

Publicado na edição n° 1359 de CartaCapital, em 30 de abril de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Dano colateral’

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Last Update: 24/04/2025