POR EDWARD MAGRO
Nem todos os vampiros são eternos, mas Dalton Trevisan parece ter desafiado essa regra até o limite. O escritor paranaense, um dos maiores contistas brasileiros e lendário “Vampiro de Curitiba”, nos deixou nesta segunda-feira, aos 99 anos. Ao contrário dos personagens que criava, cheios de vícios e sombras, Trevisan foi um recluso peculiar, mas profundamente humano, que transformou sua vida e obra em um irresistível mistério literário.
“Todo vampiro é imortal. Ou, ao menos, seu legado é”, escreveu sua família em um comunicado. E que legado! Autor de cerca de 50 obras, todas marcadas por uma busca obsessiva pela concisão, ele fez dos contos a sua morada eterna. “Para escrever o menor dos contos a vida inteira é curta. Nunca termino uma história. Cada vez que a releio, eu a reescrevo”, confessou em 1965. A versão reduzida de “Eucaris — a dos Olhos Doces” é prova disso: começou com mais de mil palavras em 1945 e terminou com 229 em sua edição final.
Recluso ou espião?
Trevisan nutria uma aversão especial à imprensa. Sua última entrevista foi em 1972, mas sua ausência não significava inatividade. Enquanto muitos o imaginavam trancado em uma mansão gótica — ou algo do tipo —, o autor circulava tranquilamente por Curitiba. “Ele não era recluso, era um flâneur”, garantem amigos. Era visto em caminhadas matinais, trocando acenos com estudantes de letras que, nervosos, cochichavam: “É ele!”
Mesmo assim, gostava de alimentar a aura de mistério. Receber jornalistas? Jamais! Mas pregar peças, sim. Em uma ocasião, atendeu uma repórter se passando por outra pessoa, apenas para, no final, revelar sua verdadeira identidade com um sorriso zombeteiro. Esse humor ácido também permeava suas opiniões. “Você já viu gente de mais de 80 anos produzir alguma coisa que preste?”, provocava, contradizendo sua própria carreira prolífica.
Uma Curitiba à sua imagem e semelhança
Curitiba é praticamente um personagem em sua obra. Era na cidade que ele caminhava, observava e escrevia. Mesmo sua casa antiga, com pichações que ele nunca fez questão de remover, ganhou um “acento punk”, como descreveu certa vez um amigo. Nada de muros altos ou portões opacos; as cortinas cerradas já eram suficientes para preservar o mistério.
A cidade, que sempre esteve presente em seus contos, retribuirá o carinho. Em 2025, ano em que Trevisan completaria 100 anos, a editora Todavia relançará sua obra completa, junto com uma antologia especial. E, para coroar a celebração, Curitiba prepara um desfile carnavalesco, com o enredo “Os Cem Anos do Vampiro”. A ironia certamente arrancaria um sorriso do escritor.
O homem, o mito, o monstro moral
Trevisan era muitas coisas: minimalista, polemista, cronista da solidão urbana, mas, acima de tudo, um “monstro moral”, como gostava de se autodefinir. Seus personagens, como o inesquecível Nelsinho de “O Vampiro de Curitiba”, espelhavam a melancolia e as contradições humanas. “Eu vos desprezo, ó virgens cruéis. A todas eu poderia desfrutar. Ser eunuco, ai quem me dera”, diz Nelsinho, encapsulando a solidão de quem devora e é devorado pelos próprios desejos.
Dalton Trevisan deixa duas netas, Katiuscia e Natasha, além de várias gerações de leitores, contistas e aspirantes que dariam a jugular para uma mordida de sua genialidade.
Como ele próprio dizia: “Só a obra interessa.” Mas a verdade é que o Vampiro de Curitiba era tão fascinante quanto os contos que escreveu. E agora, ao apagar das luzes, permanece mais vivo do que nunca.