O Brasil, país cuja formação se alicerça em séculos de escravidão e exploração, carrega até os dias atuais marcas profundas de um processo inacabado de emancipação social e racial. A abolição da escravidão em 1888, muitas vezes celebrada como um gesto libertador, na verdade operou como uma transição da escravidão formal para formas modernas de subjugação e exclusão. Conforme denuncia Angela Davis (2016), “a escravidão não acabou, apenas se transformou em novas formas de controle social”, como o encarceramento em massa e a marginalização estrutural.
Este artigo propõe uma reflexão crítica sobre como a população negra brasileira, após o fim da escravidão, foi sistematicamente marginalizada, segregada espacialmente em morros e periferias, origem das favelas e posteriormente criminalizada, tornando-se o principal alvo do sistema penal. Trata-se de um ciclo perverso que remete às estruturas da escravidão e à lógica de continuidade do racismo estrutural.
A liberdade concedida em 1888, fruto de pressões internacionais e da economia em transformação, foi uma falsa liberdade. Como aponta Silvio Almeida (2019), “a abolição não veio acompanhada de mecanismos que assegurassem a integração dos negros à sociedade brasileira como cidadãos plenos”, mas sim de uma lógica de exclusão que os lançou à própria sorte. Sem acesso à terra, educação, moradia ou trabalho digno, os ex-escravizados e seus descendentes foram empurrados para as franjas da sociedade, enquanto a elite branca ocupava os centros urbanos e as terras produtivas.
Essa segregação forçada resultou na formação das primeiras favelas, como reflexo direto da exclusão social e racial. Lélia Gonzalez (1988) já havia alertado que o espaço urbano brasileiro sempre foi racialmente hierarquizado, sendo o corpo negro relegado à invisibilidade ou ao confinamento. A urbanização brasileira, longe de integrar, acentuou desigualdades.
Na segunda metade do século XX, com o processo de industrialização e as políticas desenvolvimentistas, especialmente durante o governo de Juscelino Kubitschek, observou-se um crescimento econômico seletivo. Ainda que houvesse mobilidade social para parte da população, ela se deu quase exclusivamente entre brancos e mestiços claros. Os negros foram novamente relegados a funções subalternas e mal remuneradas, como a construção civil, que perpetua a figura do “negro carregando o Brasil nas costas” e o trabalho doméstico, este último ainda amplamente marcado por heranças escravocratas (Nascimento, 1980).
As consequências dessa histórica exclusão reverberam com brutalidade nas estatísticas carcerárias. Atualmente, o Brasil possui a terceira maior população prisional do mundo, sendo que cerca de 68% dos presos são negros, segundo dados do INFOPEN (2023). Como afirma Juliana Borges (2019), “o cárcere é a nova senzala”, reproduzindo o controle dos corpos negros sob a roupagem da legalidade e da ordem pública. A criminalização da pobreza e da negritude legitima a seletividade penal e o encarceramento em massa como forma de controle social.
As favelas e os presídios, embora distintos em sua materialidade, compartilham a lógica da contenção e da negação de direitos. As periferias urbanas, construídas sobre a exclusão racial e a negligência do Estado, tornaram-se territórios vulnerabilizados, frequentemente tratados como “zonas de guerra” pela atuação do aparato policial. Como mostra Jaime Amparo- Almeida (2021), a violência policial é seletiva e tem cor — sendo os jovens negros suas principais vítimas.
Nesse contexto, a juventude negra encontra-se aprisionada entre a ausência de oportunidades e a criminalização de sua existência. A criminalidade, longe de ser uma escolha, muitas vezes se apresenta como uma das poucas estratégias de sobrevivência diante de um sistema que os nega desde o nascimento. O ciclo é perverso: exclusão gera vulnerabilidade, que gera repressão, que retroalimenta a exclusão.
Romper com essa lógica exige mais do que boas intenções: exige reparação histórica. Como propõe Abdias do Nascimento (1980), não se trata de caridade ou benevolência, mas de justiça social. É imperativo que o Estado brasileiro implemente políticas públicas que assegurem a igualdade de oportunidades, como acesso universal à educação de qualidade, moradia digna, inserção no mercado de trabalho formal e valorização da cultura afro-brasileira. Isso implica também a reformulação das estruturas do sistema penal e da segurança pública, ainda pautadas em um racismo institucional persistente. Mais do que integrar, é preciso reconhecer o valor histórico, cultural e social da população negra; reconhecer o legado da escravidão; e reconhecer que a desigualdade no Brasil tem cor. A luta antirracista deve estar no centro da agenda pública e da construção de um projeto de país mais justo, plural e democrático.
Referências Bibliográficas
- ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.
- AMPARO-ALMEIDA, Jaime. A guerra contra os pretos: racismo, segurança pública e necropolítica no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
- BORGES, Juliana. Encarceramento em massa. São Paulo: Jandaíra, 2019.
- DAVIS, Angela. A liberdade é uma luta constante. São Paulo: Boitempo, 2016.
- GONZALEZ, Lélia. Lugar de negro. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1988.
- NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Petrópolis: Vozes, 1980.
- INFOPEN. Levantamento Nacional de Informações. Penitenciárias. Ministério da Justiça e Segurança Pública, 2023.