Muitos se surpreenderam com o tombo do governo Lula nas pesquisas. No Datafolha, foram 11 pontos em dois meses, de 35% para 24%. Para quem acompanhava os acontecimentos com senso crítico e sem a tradicional adulação, a queda era, no entanto, previsível. O governo entrou no modo crise praticamente ao longo de todo o ano de 2024. Dois elementos principais alimentaram a combustão interna. De um lado, as sucessivas declarações do presidente Lula que minaram sua credibilidade e desgastaram a sua imagem. De outro, o ataque sistemático à equipe econômica feito por outros ministros e dirigentes do PT, com a condescendência do presidente em vários momentos e com a colaboração da primeira-dama.
Nenhum governo pode minar sua equipe econômica, desacreditá-la. Por coordenar os interesses do Estado, da sociedade e dos agentes econômicos, ela deve ser o centro fiador da credibilidade do governo e do presidente. Sem isso, não há administração capaz de sustentar a confiança e de coordenar as expectativas, imprimindo uma direção e um sentido ao País. Esse é o principal fulcro da crise política.
Em qualquer governo, os dados da economia oscilam positiva ou negativamente por conta de diversos fatores, inclusive sazonais e, agora, em decorrência da emergência climática. Nos momentos de oscilação negativa, se o governo tem credibilidade e capacidade persuasiva, reúne condições de equilibrar os termos, relativizar a negatividade com dados positivos e, principalmente, apontar perspectivas positivas para o futuro. Mas essas iniciativas se tornarão críveis para a população se governo e sua equipe econômica tiverem credibilidade.
Com esse ambiente de deterioração interna, as crises e os erros se acumularam. Lula atacou inimigos fantasiosos, a crise do Pix mostrou uma administração de governo incapaz de reagir às investidas dos inimigos e capitulando sem enfrentar o problema, a comunicação claudicante, analógica e fora do tempo. Na comunicação, o governo não entende nem os meios nem a linguagem que as redes digitais requerem para persuadir, convencer e engajar.
Os problemas não param por aí. O ministério e sua gestão baseiam-se num modelo destinado ao fracasso, o modelo do príncipe que gere uma enormidade de províncias (ministérios, departamentos e estatais) com um grão-vizir. Os Estados modernos são burocráticos e complexos, máquinas de poder, com administração alargada. Somente um Estado-Maior dirigente e coordenador centralizado pode imprimir uma gestão eficaz ao governo como um todo. É preciso dizer que Lula não gere o seu ministério e que este se move pela dispersão, falta de coordenação e de integração até mesmo nas boas inciativas e nos bons programas existentes. Em suma: esta situação se traduz num governo sem comando, incapaz de explicitar qual projeto tem para o País. Sem rumo e sem marcas.
Se ficar preso a uma institucionalidade decrépita, o destino será incerto
Trata-se de um governo politicamente passivo, lento, que opera na defensiva e se deixa assediar por sucessivos ataques dos inimigos. Ele não propõe o embate, a pauta. Defende-se, e mal, dos ataques. Não governa a base congressual e partidária. Deixa-se arrastar por ela.
A soma de incapacidades e erros criou uma imagem ruim do governo, até mesmo entre apoiadores e eleitores de Lula. Não por acaso, o governo e Lula perdem apoio em setores mais pobres e no Nordeste. O governo não encanta, cansa. Com isso, consegue provocar baixo engajamento nas redes e nas ruas. Esse problema não é apenas do governo. Ele espelha aquilo que é a esquerda. Uma esquerda de gabinetes, longe das ruas, longe das periferias e usuárias de uma linguagem receituária, sem vida, sem afetos e sem valores.
Não são poucos os apoiadores do governo, entre eles muitos petistas, que dizem que o governo está numa encruzilhada. Para os mais céticos, como é o meu caso, ele ultrapassou a encruzilhada e se encaminha para um destino trágico – aquela condição que quanto mais quer se livrar do destino, mais age para realizar sua tragédia.
Muitos se perguntam: Há salvação? Alguns acreditam nos poderes mágicos de Lula, que costuma proporcionar viradas surpreendentes de última hora. É uma temeridade. Os tempos são outros e, hoje, eles requerem outras capacidades mágicas. Outros dizem que a reforma ministerial é a chance de o governo ter para dar uma virada de rumos. Aqueles que vislumbram um destino trágico dizem que a reforma pode piorar o atual quadro e jogar o governo numa lenta agonia.
O governo parece não ter saídas só com sua mercantilista base congressual, só com os seus partidos imobilistas de esquerda. Somente a mobilização, a organização e a pressão social parecem ser elementos constitutivos de um possível despertar do governo e da própria esquerda. A mobilização deve agregar as pautas populares, a exigência de punição aos golpistas, um não à anistia e um projeto de desenvolvimento sustentável capaz de fazer convergir a transição ecológica e a transição digital em favor do povo, da justiça, da igualdade e da liberdade. Somente esses ingredientes parecem capazes de despertar uma força ativa e de luta para enfrentar a extrema-direita nas ruas e nas redes. O governo não tem salvação na equação de uma institucionalidade decrépita, com fortes tonalidades não só de falência política, mas de profunda crise moral. •
*Professor da Escola de Sociologia e Política e autor de Liderança e Poder.
Publicado na edição n° 1350 de CartaCapital, em 26 de fevereiro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Dá para recuperar?’