Da cidadania constitucional à vida parasitária precária dentro de um imenso parasita
por Fábio de Oliveira Ribeiro
A história do Estado é também uma história de metáforas. A primeira metáfora do Estado que conhecemos é aquela contada por Tito Lívio.
Quando a Plebe se retirou para o monte Sacro, Menênio Agripa foi encarregado ir ao encontro dos revoltosos e convencê-la a retornar a Roma.
“Introduzido no acampamento, diz-se que ele limitou a narrar na linguagem rude da época o seguinte apólogo: ‘No tempo em que o corpo humano não formava como agora um todo harmonioso, mas cada membro possuía sua própria opinião e sua própria linguagem, todas as partes do corpo revoltaram-se porque o estômago obtinha tudo à custa de seus cuidados, seu trabalho e serviços, ao passo que ele próprio, ocioso no meio deles, não fazia outra coisa a não ser gozar dos prazeres que lhe eram dados. Então os membros conspiraram para que a mão não levasse mais alimento á boca, nem a boca o recebesse, nem os dentes o mastigassem. Mas enquanto, por ressentimento, queriam domar o estômago pela fome, os próprios membros e todo corpo chegaram a um extremo esgotamento. Compreenderam então que o estômago não vivia na ociosidade, que não era apenas alimentado por eles, mas os alimentava também, devolvendo a todas as partes do corpo esse sangue que nos dá vida e força, distribuindo-o pelas vias depois de elaborá-lo pela digestão dos alimentos.’ Finalmente, mostrando que a revolta do corpo assemelhava-se à cólera dos plebeus contra os patrícios, conseguiu fazê-los mudar de opinião.” (Ab Urbe Condita Libri, Tito Lívio, primeiro volume, Paumape, São Paulo, 1989, p. 150)
Esse apólogo parece ter sido a maneira que os escritores romanos encontraram para não dizer que a revolta dos plebeus somente foi aplacada com uma importante concessão política: a criação do tribunato da plebe. Essa magistratura dotada do poder sacrossanto de veto, possibilitou à Plebe conter os abusos cometidos pelos patrícios e pelos cônsules, reconfigurando totalmente as relações de poder em Roma. Todavia, o que nos importa aqui é menos a história do que a própria metáfora. O Estado é visto como um organismo vivo, cuja saúde e existência depende da coordenação de todas suas partes.
Num momento seguinte, essa metáfora Estado/órgãos do corpo humano foi expandida por Thomas Hobbes:
“Uma Multidão se converte em Uma só Pessoa quando é Representada por um homem ou uma Pessoa, de tal forma que esta possa atuar com o consentimento de cada um dos indivíduos que compõe essa Multidão. Isso representa a Unidade do Representante, não a Unidade dos Representados, o que faz a pessoa Una. E é o Representante quem sustenta a Pessoa, porém, apenas uma Pessoa. A Unidade não pode ser entendida de outro modo na Multidão.” (Leviatã, Thomas Hobbes, Ícone Editora, São Paulo, 2008, p. 121).
“Um Estado é considerado Instituído quando uma Multidão de homens Concorda e Pactua, que a qualquer Homem ou Assembleia de homens a quem seja atribuído o Direito de Representar a pessoa de todos eles (ou seja, de ser seu Representante), todos sem exceção, tanto os que Votaram a favor dele como os que Votaram contra ele, deverão Autorizar todos os Atos e Decisões desse homem ou Assembleia de homens, como se fossem seus próprios Atos ou Decisões, a fim de poderem conviver pacificamente e serem protegidos dos restantes homens.” (Leviatã, Thomas Hobbes, Ícone Editora, São Paulo, 2008, p. 128)
Assim, a metáfora romana se desloca dos órgãos de um homem para a multidão organizada de homens. O Estado ou Leviatã hobbesiano é um grande homem composto por homens minúsculos, todos agindo de maneira coordenada para um mesmo fim: a convivência pacífica proteção de cada qual. Essa metáfora funcionava bem independente do regime de governo, ou da natureza tolerante ou autoritária, do próprio Estado.
Mas a metáfora de Hobbes perdeu sua utilidade. Na atualidade o Estado depende demais das redes de computadores conectados e das máquinas virtuais de calcular probabilidades (IAs) do que dos homens de carne e osso que fazem parte dele. Todas as relações, públicas ou privadas, que ocorrem entre os Estados, as empresas e os cidadãos são mediadas por computadores e smartphones on line ou, no mínimo, geram dados que são armazenados em data centers. Os donos desses data centers e das máquinas virtuais capazes de correlacionar dados são agentes privados que adquiriram um imenso poder público.
De certa maneira, em razão de sua total dependência dos produtos e serviços de computação em rede, o “Leviatã-Multidão de homens” foi envolvido ou engolido pelas Big Techs. Isso deslocou a soberania do Representante (para usarmos a terminologia de Hobbes) para o Engenheiros de TI e/ou para os barões tecnofeudais. Isso explica, por exemplo, como e porque Donald Trump consegue impor sanções bancárias a qualquer pessoa em qualquer lugar do planeta desligando a validade e eficácia do Direito Privado local (como ocorreu no caso do Ministro Alexandre de Moraes, do STF, e também no de Nicolas Guillou, juiz do Tribunal Penal Internacional).
Envolvido ou engolido pelas Big Techs, o “Leviatã-Multidão de homens” já não consegue mais mobilizar o Direito Privado local para garantir a proteção de seus cidadãos e mesmo a autoridade dos Tribunais nacionais e internacionais. Assim, os seres humanos não fazem mais parte do verdadeiro Estado ou no mínimo o pertencimento a um Estado em particular (como o Brasil e a França, por exemplo) se tornou irrelevante. Como suas personalidades reais podem ser afetadas à distância e impunemente por sanções tecnologicamente impostas às suas personalidades digitais, os seres humanos foram rebaixados à condição de parasitas.
Nós vivemos uma vida parasitária precária no intestino de um grande parasita. E esse parasita pode tanto ser o “Estado-Multidão de homens” deglutido tecnologicamente pelas Big Techs quanto as próprias Big Techs que canibalizaram o Leviatã a ponto de poder desligar à distância validade e eficácia de seu Direito Privado.
Não existe Estado sem povo. Essa era uma máxima que se podia extrair do apólogo de Menênio Agripa e da filosofia política de Thomas Hobbes. Na fase atual, o povo mais importante não é aquele que vive no “Estado-Multidão de homens” e sim aquele que vive como simulacro digital nos data centers das Big Techs. Quem controla as representações digitais das pessoas pode também controlar a realidade em que elas vivem ou podem deixar de viver bem e em paz podendo movimentar suas contas-correntes.
O deslocamento do ser humano da superfície do Leviatã para o intestino de um parasita (seja ele real, o próprio Estado devorado pelas Big Techs; ou virtual, os bancos de dados e IAs controlados pelos Engenheiros de TI e/ou barões tecnofeudais) é um fato com implicações importantes para a teoria do Direito Constitucional. Todavia, os Constitucionalistas ainda não se deram conta da grande transição ou transformação civilizacional que se consolidou.
Independentemente da metáfora utilizada no passado, a população ou uma parcela da população do “Estado-Multidão de homens” podia se rebelar e obter concessões. Eventualmente os rebelados conseguiam forçar a criação de uma magistratura com poder sacrossanto de veto (Tribunos da Plebe, em Roma) ou até mesmo a mudança de regime político (Revolução Francesa, fim da ditadura militar no Brasil). A vida humana parasitária dentro de um imenso parasita é incompatível com qualquer tipo de rebelião.
No mundo antigo de Tito Lívio, na época de Thomas Hobbes, e mesmo há algumas décadas, uma pessoa exilada por razões políticas ou que optasse pelo auto-exílio por segurança era geralmente esquecida pelo seu Estado e não seria mais perseguida pelo governo do seu país. Rebaixado à condição de parasita dentro do Leviatã engolido pelas Big Techs, o ser humano não pode mais se exilar. Onde quer que esteja, algoritmos punitivos o alcançarão, e ele jamais será esquecido. Esta é uma novidade que nunca existiu antes na história da humanidade e na história das instituições políticas humanas.
A assimetria tecnológica garante aos Engenheiros de TI e/ou barões tecnofeudais a possibilidade de exercer um poder absoluto que ultrapassa fronteiras. Eles podem invisibilizar seus críticos, interferir no resultado de eleições e até provocar guerras civis pequenas ou grandes impulsionando apenas os conteúdos que lhes interessam. No mundo virtual deles a rebeldia dos parasitas humanos pode ser tecnologicamente contornada ou programada. “Parasitas humanos, obedeçam.” dizem sempre nas entrelinhas Elon Musk, Peter Thiel, Larry Ellison, Mark Zuckerberg, Jeff Bezos e outros da mesma laia.
Alguns “Estados-Multidões de homens” lutam para conquistar algo que poderia ser chamado ironicamente de Poder Tribunício de Veto Virtual Local. Todavia, esses Leviatãs tecnologicamente deglutidos pelas Big Techs não têm realmente como se refugiar no monte Sacro. E até o presente momento a rebeldia deles está sendo contida. A nova doutrina Trump é a expressão máxima de uma nova estrutura de poder que pretende conservar a assimetria tecnológica das Big Techs e o status subalterno ou parasitário da maioria dos modernos Leviatãs. Até onde os norte-americanos estão dispostos a ir para perpetuar o controle de tudo e de todos o tempo todo em todos os lugares?
Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.
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