E muito difícil encaixar a obra do compositor, letrista, cantor e escritor Vitor Ramil numa cena musical ou em um movimento artístico, tamanha a sua amplitude. O pesquisador Paulo Silva mergulhou nesse universo singular e produziu um ensaio vigoroso: Vitor Ramil, o Astronauta Lírico.
O livro é um justo e minucioso trabalho centrado nos discos, shows e livros desse artista com mais de 40 anos de carreira.
Tudo em sua trajetória parece bem estudado e conceituado. Nascido em Pelotas, no Rio Grande do Sul, Ramil vem de uma família de músicos. Seus irmãos são Kleiton e Kledir, da dupla que leva esse nome. Seus álbuns literomusicais são densos; suas apresentações, teatrais; e seus livros têm personagens complexos.
Paulo Silva, sociólogo de formação, autor também de Hotel Universo: A Poética de Ronaldo Bastos (Azougue Editorial, 2019), sobre outro nome bastamente único na música brasileira, procura, em O Astronauta Lírico, compreender em que diapasão a obra de Ramil vibra.
E ele chega à conclusão de que o artista está mais perto das experimentações da Vanguarda Paulista de Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção e Grupo Rumo – ao menos no “espírito”, no dizer do próprio músico – do que de representantes da sua geração neotropicalista, como Chico César e Lenine, com quem chegou a fazer parcerias.
Em seu primeiro disco, Estrela, Estrela (1981), gravado aos 18 anos, Vitor Ramil já se apresentava sólido, em versos como Estrela, estrela/ Como ser assim/ Tão só, tão só/ E nunca sofrer, e em nada disposto a fazer concessões à sedenta indústria fonográfica – algo raro para artistas em início de carreira.
O segundo álbum, A Paixão de V Segundo Ele Próprio (1984), Paulo Silva enxerga como um dos grandes momentos musicais de Ramil. O autor cita a profundidade na experimentação e o trabalho com formas inusitadas, apontando-o como um dos “álbuns mais inventivos” da canção brasileira.
O ensaio debruça-se ainda sobre o que seria uma marca da discografia do gaúcho: a prática de musicar poemas. Recentemente, ele lançou o disco Avenida Angélica (2022), no qual trabalhou sobre poemas da gaúcha Angélica Freitas.
Na década passada, no álbum Délibáb (2010), compôs 12 canções para poemas do argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) e do brasileiro João da Cunha Vargas (1900-1980). Délibáb significa, em húngaro, “ilusão do Sul”. A questão do Sul, cabe lembrar, é constitutiva de seu próprio posicionamento no campo cultural.
No encarte do disco Ramilonga – A Estética do Frio (1997), ele escreveu um texto, em tom de manifesto, sobre a milonga – gênero musical da região platina, e sua referência, como pontua Paulo Silva.
O compositor morou em Porto Alegre e no Rio de Janeiro nos anos 1980 e, no início da década de 1990, retornou a Pelotas, onde está até hoje. Ele vivia no Rio quando, assistindo ao Jornal Nacional, se sentiu descolado do País. O noticiário televisivo tratava com naturalidade um carnaval fora de época (junho) no Nordeste e reputava exótico o inverno do Sul.
No manifesto Estética do Frio, o autor, de forma engenhosa e sem conflitos, como diz Silva, busca dar centralidade à cultura do Sul, em confluência com a Argentina e o Uruguai – países com os quais o Rio Grande do Sul e ele próprio mantêm estreitas relações.
O livro revela um compositor perfeccionista, em constante recriação, e em permanente tensão com o establishment
Ramil, como mostra o livro, tem ainda proximidade com a poesia concreta dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos (1929-2003), extremamente imagética. O expressionismo literário de Augusto dos Anjos (1884-1914) também exerce influência importante em sua obra – de canções a livros.
Seus três romances de ficção – Pequod (1995), Satolep (2008), um palíndromo de Pelotas, e A Primavera da Pontuação (2014) – são engenhosos e intrincados.
O livro Vitor Ramil, o Astronauta Lírico, que mistura reflexão analítica, crítica cultural, pesquisa em periódicos e conversa com o próprio personagem, revela um artista perfeccionista, em constante recriação, e dotado de espantosa criatividade. Trata-se ainda de alguém em permanente tensão com o establishment.
Mais do que a estética do frio, o cantor e compositor parece querer mesmo o “implosivismo”, manifesto pessoal no qual diz basear sua criação: um experimento necessariamente de vanguarda, baseado na ideia de implosão e recriação, de desmonte e novo pensar.
Se Vitor Ramil carrega em si muito da essência do que é ser artista, Paulo Silva consegue, neste trabalho, adentrar os “enigmas, labirintos, emaranhados” dessa criação. •
Publicado na edição n° 1321 de CartaCapital, em 31 de julho de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Da estética do frio às milongas’