“Acreditamos que, enquanto educadores comprometidos com a transformação dos sujeitos, temos o dever de atender essa grandiosa tarefa que é alfabetizar”. Foto: Rafa Dotti

Por Fabiana Reinholz
Do Brasil de Fato | Porto Alegre (RS)

“Tenho 57 anos, e sempre tive essa vontade de aprender a ler e escrever. Às vezes as pessoas perguntam, mas por que é que tu não estudou no colégio? Mas como a gente tem família, o horário do colégio nunca fechava. E agora surgiu essa oportunidade. Tô muito feliz por essa oportunidade dos professores de nos ensinar”, comenta emocionada a vendedora autônoma Natália dos Reis Souza.

Moradora da Vila Pedreira há 40 anos, bairro Cristal, Natália faz parte da primeira turma de alunos do curso de alfabetização de Jovens Adultos com o método cubano “Sim, Eu Posso!”, de Porto Alegre. 

O método foi criado pela pedagoga cubana Leonela Inés Relys Díaz, e já tem alfabetizado quase 11 milhões de pessoas em mais de 30 países. Pioneiro da implementação do método no Brasil, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), calcula que mais de 100 mil pessoas foram alfabetizadas através do Sim, Eu Posso no país. No ano passado, por exemplo, 1.067 educandos(as) se formaram em Maricá, Rio de Janeiro.

Inicialmente o método foi implementado nas áreas de reforma agrária, sobretudo em alguns estados do Nordeste e também no Paraná. “Nesse espírito de solidariedade o MST entendeu que também era sua tarefa levar essa rica experiência para os territórios urbanos, as periferias. Nesse contexto que se montou Brigadas Nacionais de Alfabetização, onde tivemos alguns educadores e educadoras aqui do Rio Grande do Sul que se somaram nessa tarefa”, afirma a militante do MST e do Coletivo Estadual de Educação Juliane Soares Ribeiro. 

De acordo com Juliane, há algum tempo havia o estudo do método no RS e que a partir do diálogo com os militantes, que contribuíram nas Brigadas Nacionais de Alfabetização, foi tomada a decisão de buscar parcerias para implementar ele no estado. Em um primeiro momento o movimento buscou parcerias com algumas prefeituras, mas infelizmente o processo não andou. “Ano passado, a partir do vínculo do Movimento Sem Terra com as cozinhas solidárias aqui da região Metropolitana iniciou-se o dialogo com a Associação de Moradores ali da Pedreira, e demais parceiros, como a Associação José Martí.”

Primeira turma 

A articulação da primeira turma foi feita pelo Fórum Social das Periferias com a Associação Cultural José Martí do RS, e implementada juntamente com MST, Associação dos Moradores Força Maior da Vila Pedreira, Levante Popular da Juventude, Organização Olufé, Esperançar e demais parceiros. 

Segundo expõe Juliane e o presidente da Associação José Martí, Ricardo Haesbaert, a partir da demanda concreta da associação, da articulação e da construção de um coletivo de acompanhamento, foi possível dar os primeiros passos, de mapear os educandos, organizar a infra-estrutura do local das aulas, fazer formação com os educadores e após longos passos, muitas reuniões de planejamento, concretizar o inicio das aulas em outubro de 2024.

“A primeira turma urbana e rural do RS foi implementada através de uma iniciativa do Fórum Social das Periferias que percebeu, ao longo das suas organizações e associações de moradores, que na cidade de Porto Alegre tem muita gente que não sabe ler e escrever. É uma chaga que a gente tem, e temos que enfrentar isso com muita intensidade. É uma pena que os governos, tanto municipais, estadual e o próprio Governo Federal não tenham o investimento necessário para acabar com isso”, ressalta Haesbaert.  

Natália dos Reis Souza faz parte da primeira turma de alunos do curso de alfabetização de Jovens Adultos. Foto: Rafa Dotti

De acordo com o Censo Demográfico de 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2022, dos 163 milhões de pessoas de 15 anos ou mais de idade no país, 151,5 milhões sabiam ler e escrever um bilhete simples e 11,4 milhões não sabiam. A Região Sul continua com a maior taxa de alfabetização, que aumentou de 94,9% em 2010 para 96,6% em 2022. Apesar disso, o estado gaúcho registrou 256 mil analfabetos. Segundo dados da 4ª edição do Observatório da Educação Pública do Rio Grande do Sul, elaborado pela Comissão de Educação, Cultura, Desporto, Ciência e Tecnologia, da Assembleia Legislativa do RS, a matrícula para educação de Jovens e Adultos caiu de 39.995 em 2022 para 32.820 em 2023.

“É uma obrigação de quem tem consciência social, comprometimento com a libertação dos povos, implementar o Sim, Eu posso, mesmo que de forma ainda um pouco precária, porque não temos recursos. Mas estamos indo atrás e mostrando que é possível”, afirma Haesbaert.

Adriana Correia de Faria é a presidenta da Associação de Moradores da Vila Pedreira. Foto: Rafa Dotti

“Sim, Eu posso!”

“Eu queria uma alfabetização para crianças. Daí veio a ideia de alfabetizar os adultos também, depois que eu soube que a Natália, que é uma empreendedora, não sabe ler e escrever os produtos que ela vende só através de áudio”, conta a presidenta da Associação de Moradores da Vila Pedreira, Adriana Correia de Faria. Foi através de grupos de Whatsapp que a iniciativa na comunidade foi tomando forma e dando início a primeira turma. As aulas acontecem na sede da Associação, três vezes por semana, no período da tarde. 

O método está organizado em vídeo aulas (telenovela), que na avaliação de Juliane, facilita o aprendizado dos educandos, uma vez que muitas vezes não estão acostumados com o padrão de sala de aula convencional onde só o educador fala e eles só copiam do quadro. “Esse método proporciona que haja diálogo com os conteúdos que são apresentados, onde os alunos conseguem também trazer elementos de suas próprias vivências nesses diálogos.” 

Ao mesmo tempo que os educandos aprendem, os monitores também aprendem, como observa o pedagogo e mestre de capoeira Alexandre Cordeiro Figueira. Formado há 16 anos, Figueira é um dos monitores do curso, e comenta que para ele tem sido um grande aprendizado enquanto professor.

“É bem interessante ver a alfabetização de jovens adultos que não tiveram a oportunidade na idade apropriada de hoje estarem aprendendo a ler e escrever. Esse método Sim, Eu Posso, trabalha a partir dos números para a gente poder ensinar o alfabeto pelas vogais e consoantes. Isso facilita bastante a aprendizagem. Em dois meses de curso os alunos já estão conseguindo ler e escrever”, expõe. 

As aulas acontecem na sede da Associação, três vezes por semana. Foto: Rafa Dotti

Como alfabetizador, Figueira comenta que nunca viu pessoas se alfabetizando tão rápido quanto neste método. “E a gente vê a alegria das pessoas quando elas aprendem a se virar sozinhas. Não precisar da família para ajudar. E aqui é tudo feito de uma forma bem tranquila, passo a passo. Vão aprendendo, compreendendo. A gente não fica só preso naquela doutrina da aula.”

Conforme complementa Haesbaert, no método Sim, Eu Posso, as pessoas conseguem aprender a ler e escrever em três meses. “É claro que depois a gente continua com o processo de leitura para eles avançarem mais. Não é uma coisa simplesmente formal de aprender a ler e escrever, está pronto. Vai continuar o processo de trabalho todo de aumentar as possibilidades de visões do mundo, e eles poderem pensar por conta própria e não serem monitorados pela grande mídia, pela escola tradicional.”

“Esse método proporciona que haja diálogo com os conteúdos que são apresentados, onde os alunos conseguem também trazer elementos de suas próprias vivências nesses diálogo”. Foto: Rafa Dotti

Atrás do tempo perdido

Além de Natália, o aposentado Altino Vieira Padilha, 72 anos, aposentado, também faz parte da turma. Emocionado afirma que o curso é muito importante, pois ele não sabia ler e nem escrever. “No tempo de criança eu não consegui aprender. Agora é prazeroso. É bom estar aprendendo, aprender alguma coisa para poder sair sem tá precisando dos outros, sem tá perguntando para os outros que é isso?”

De acordo com a analista do IBGE Betina Fresneda, a elevada taxa de analfabetismo entre os mais velhos é um reflexo da dívida educacional brasileira, cuja tônica foi o atraso no investimento em educação, tanto para escolarização das crianças, quanto para a garantia de acesso a programas de alfabetização de jovens e adultos por uma parcela das pessoas que não foram alfabetizadas nas idades apropriadas. 

Altino Vieira Padilha, 72 anos, aposentado, afirma que o curso é muito importante, pois ele não sabia ler e nem escrever. Foto: Rafa Dotti

Na infância, por conta das mudanças constantes da sua família, Natália só conseguiu frequentar a primeira série. “Os anos foram passando e eu acabei não aprendendo a ler e a escrever. Depois as minhas filhas se casaram, eu fiquei sozinha, eu e meu esposo. E aí eu tenho que estar pedindo para alguém escrever. E graças a Deus teve essa oportunidade, esse processo de aprender. Para mim está sendo bom porque eu já conheço as letras, a minha dificuldade é de formar as palavras.” 

Adriana comenta que logo que iniciou a turma outras pessoas mostraram interesse no curso, como ele já tinha iniciado, não tinha como agregar novos alunos, mas que a expectativa é que se abram novas turmas. “A gente tem uma parceria com agentes de saúde que fazem a busca ativa das pessoas que não sabem ler nem escrever. A assistente social aqui da região também nos procurou porque tem pessoas que estão interessadas.” 

Integrante do Fórum das Periferias e da Associação de Moradores da Vila Pedreira, Júlio Celso Taveira Pedroso diz que a ideia é expandir para outras comunidades o método. “Nós abraçamos porque é uma coisa sensacional. Dentro da nossa comunidade, e em outras comunidades também, tem muita gente que não sabe ler nem escrever. Gente já com idade avançada, que precisam, que trabalham, e não tem essa oportunidade de conseguir ter uma porta de entrada para dentro desse universo, que é saber ler e escrever, pra nós foi muito gratificante a gente trazer esse processo para cá.”

“Até o momento estamos fazendo na solidariedade de cada um e cada uma”. Foto: Rafa Dotti

A busca pela erradicação do analfabetismo

“Temos um desafio grandioso nessa área da alfabetização, mas enquanto movimento, e esse coletivo que tem se consolidado, temos acordo que devemos ‘espraiar’ essa experiência. Internamente no MST temos dialogado sobre implementar o método nos nossos acampamentos. Contudo, precisamos buscar projetos/recursos que financiem iniciativas como essas. Até o momento estamos fazendo na solidariedade de cada um e cada uma, e suas organizações, envolvidas, mas temos muitos limites orçamentários”, expõe Juliane.

Segundo a militante, a importância do Sim, Eu Posso se coloca no desafio de ainda ter uma significativa parcela da população que teve o direito de se alfabetizar negado. “Acreditamos que, enquanto educadores comprometidos com a transformação dos sujeitos, temos o dever de atender essa grandiosa tarefa que é alfabetizar. E ousar sonhar e caminhar em busca da erradicação do analfabetismo, não só em nossas áreas, mas em todo o país.”

Edição: Katia Marko

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 11/01/2025