Historiador da Universidade Federal do Rio de Janeiro, professor emérito do Programa de Pós-Graduação em Ciências Militares da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, Francisco Teixeira vê no inquérito do golpe fracassado de Jair Bolsonaro e associados uma chance de tratar de um ponto seminal. “Sem a dissolução da cultura da tutela militar sobre a República, e isso só se faz por meio da mudança dos currículos, não haverá democracia estável no Brasil.”, afirma. Um dos autores do livro Como (Não) Fazer um Golpe de Estado no Brasil, o acadêmico analisa na entrevista a seguir as consequências, para as Forças Armadas e para o País, do envolvimento direto de 24 oficiais na tramoia. Teixeira teme que a inclusão de tantas figuras do alto escalão estimule a campanha pela anistia, em vez de sufocá-la.
CartaCapital: Surpreende a participação de tantos militares no plano golpista?
Francisco Teixeira: Nas academias e escolas militares há duas ideias norteadoras. Uma: as Forças Armadas, especialmente o Exército, criaram a nação brasileira, lá em Guararapes, em 1654, quando expulsaram os holandeses. Outra tese: a República foi proclamada pelos militares. Eles acham que receberam o poder moderador do Império e o exercem sob a República. Essas duas fábulas históricas são a base de uma cultura muito cultivada nas academias, de onde se depreende que os militares são mais patriotas, mais dedicados ao sacrifício público, são incorruptíveis e, por isso, teriam direito a exercer essa tutela. O golpe foi tentado várias vezes, desde o 7 de Setembro de 2021, quando Bolsonaro disse que não iria mais se sujeitar às decisões do Supremo. Após a eleição de 2022, os elementos de agitação saíram do acampamento dito patriótico da frente do QG do Exército, onde estavam infiltrados os chamados Kids Pretos, tropas de comando da Brigada de Operações Especiais, cujas lideranças estavam no Palácio do Planalto. Era preciso tumultuar a República de uma forma tal, para mostrar que Lula não tinha capacidade de gestão. E aí, com o País mergulhado no caos, se chamariam os militares para restabelecer a ordem. E eles viriam como os salvadores da pátria. Uma junta militar assumiria o controle com a missão de colocar tudo em ordem e evitar a comoção pela morte dos alvos, Lula, Geraldo Alckmin e Alexandre de Moraes. Essa junta possivelmente seria formada por Walter Braga Netto, pelo general Augusto Heleno e por Mário Fernandes, articulador do golpe. Se tinham a coragem de matar o presidente eleito e o vice, o que fariam com manifestações de ruas e com a mídia em termos de violência?
CC: Por que não deu certo?
FT: O alto comando do Exército não se dispôs a endossar o golpe. Dos 14 generais, cinco foram contra, três defenderam de forma veemente e os demais ficaram à espera, para saber o que iria acontecer. O 8 de Janeiro não foi um ataque direto a Lula como seria no 12 de dezembro, mas um tumulto. Paralelamente, acontecia a explosão das torres de alta-tensão em São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Goiás e Minas Gerais. A ideia era apagar o País, deixando-o sem combustível, paralisado. Ao mesmo tempo, a Polícia Rodoviária Federal tumultuava as estradas. Não era só um ato em Brasília, era um ato espalhado que estranhamente não está no inquérito. Nunca se pediu perícia das bombas que explodiram as torres de alta-tensão. Foram 16 ataques terroristas.
‘O general Walter Braga Netto não tem o menor prestígio e não inspira confiança.’ Uma das razões do fracasso do golpe
CC: A tese de que o golpe não deu certo porque a cúpula militar não aderiu à proposta é questionada por muitos especialistas, pois a intentona foi gestada nas Forças Armadas.
FT: É preciso separar as duas coisas. A maioria das Forças Armadas está profundamente insatisfeita com a Nova República e considera os políticos corruptos ou incompetentes. Há uma unanimidade contra Lula. A cultura do golpe alimenta as tropas, inclusive os jovens, convertidos nas escolas e nas academias. Daí vai uma distância muito grande em dar um golpe de Estado. Agora, aquelas instituições mais radicalizadas, como a Brigada de Força Especial em Goiânia, estão ligadas à quartelada. Se a gente vir a carreira dos golpistas, todos fizeram curso de Força Especial. O Centro de Inteligência do Exército, todo ele está convencido e infiltrado. A Brigada de Força Especial e o Centro de Inteligência do Exército são homogeneamente golpistas.
CC: Se os Estados Unidos dessem o aval para o golpe, o projeto teria sido bem-sucedido?
FT: Isso é uma reedição da teoria da dependência, desconhecendo a importância do Brasil. O que impediu o golpe foi a resistência de uma parcela importante da população e da mídia e de um grupo muito forte no alto comando que não embarcou na aventura. Na cabeça deles, eles perderam no processo de saída do golpe de 1964. Alegam que o empresariado, parte da mídia, a Igreja Católica, partidos políticos, todo mundo desceu do barco e os militares ficaram sozinhos. Isso é uma mágoa. O segundo elemento é que a liderança principal, o general Braga Netto, não tem o menor prestígio e não inspira confiança. Ao contrário de Castelo Branco, uma unanimidade em 1964, Braga Netto é visto como um egotrip. Então, eu não consideraria essa reinterpretação da teoria da dependência como capaz de explicar o fracasso do golpe, mas esses fatores típicos, atinentes ao próprio processo.
CC: Sobre a responsabilização e punição dos militares golpistas, o que deve ser feito?
FT: O ministro José Múcio falou que deveria se julgar CPFs e não CNPJs. Ele está equivocado. Em várias ocasiões, CNPJs foram julgados. Em Nuremberg, julgou-se o partido nazista, julgou-se a Gestapo, e eles foram considerados coletivamente culpados e dissolvidos. No Brasil, a ditadura julgou a UNE, o Partido Comunista, e eles foram considerados subversivos ou antipatrióticos e foram dissolvidos. Algumas instituições, como a Brigada de Força Especial, estão contaminadas. Não são só aqueles que saíram para matar Lula ou para quebrar os palácios da República.
CC: Uma anistia seria um incentivo à cultura golpista sistêmica?
FT: Ao contrário do que afirmam muitos analistas, penso que, ao se qualificar a lista de possíveis condenados, a anistia coloca-se ainda com mais força pela extrema-direita. Se ela estava se tornando um movimento forte por causa da Fátima de Tubarão ou de qualquer outra figura desse nível de importância, imagine com esses generais, políticos, como o próprio Bolsonaro. Há um risco muito grande de, com essa lista superanabolizada com grandes figuras da República, a tendência é ter um movimento pró-anistia muito mais poderoso do que antes. Vamos ter problemas enormes se não entendermos que a impunidade, o apagamento desses crimes, como foi em 1979, é um fato político extremamente grave. Se houver anistia, vão entender que vale a pena planejar e intentar crimes. •
Publicado na edição n° 1339 de CartaCapital, em 04 de dezembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Cultura usurpadora’