No Brasil, o Dia das Mães é marcado por afeto, apelos ao consumo e a exaltação de uma maternidade idealizada — amorosa, abnegada, universal. Porém, por trás desse imaginário romântico existe uma estrutura social atravessada por desigualdades interseccionais de gênero, raça e classe. A maternidade está longe de ser uma experiência única: ela assume formas radicalmente distintas, moldadas por violências institucionais, desigualdades materiais e uma divisão histórica do trabalho que sobrecarrega corpos racializados e empobrece vidas com o peso de um cuidado invisível e desvalorizado.

Segundo o IBGE, mais de 11,5 milhões de lares brasileiros são chefiados por mães solo — mais de um quarto das famílias do País. A ausência de suporte estatal e a divisão desigual das responsabilidades parentais fazem com que essas mulheres arquem sozinhas com a reprodução social. Quando olhamos para os dados por cor e renda, a realidade é evidente: são mulheres negras, pobres, moradoras das periferias que sustentam, em jornadas exaustivas e condições precárias, aquilo que a economia, a política e a cultura dominante insistem em ignorar — o cuidado como infraestrutura vital da sociedade.

Esse trabalho essencial segue subvalorizado, frequentemente mal pago ou não remunerado — e ainda distribuído de forma profundamente desigual. Segundo o Ipea, 69,9% das pessoas atuando no cuidado remunerado — como serviços domésticos e assistência a crianças e idosos — são mulheres negras. Entre as trabalhadoras domésticas, esse número chega a 65%, a maioria sem carteira assinada, com salários baixos e sem direitos garantidos.

Para compreender as raízes dessas desigualdades, o pensamento de Lélia Gonzalez, intelectual, antropóloga, filósofa e uma das vozes centrais do feminismo negro no Brasil, é indispensável. Gonzalez denunciou como o trabalho das mulheres negras foi historicamente naturalizado como extensão de uma “condição servil”, uma herança direta da escravidão e da lógica colonial. Seu conceito de amefricanidade oferece uma crítica poderosa ao feminismo hegemônico, mostrando como na América Latina racismo e sexismo operam de forma entrelaçada, moldando o lugar social das mulheres negras. É nesse marco que ela desmascara o mito da “mãe preta”: uma figura romantizada por sua dedicação, mas desumanizada e mantida à margem de direitos.

No ambiente doméstico, a desigualdade também se expressa com força. Mulheres brasileiras dedicam, em média, 21,3 horas semanais a tarefas domésticas e de cuidado, enquanto homens dedicam apenas 11,7 horas, ou seja, menos da metade do tempo. Essa sobrecarga física e mental compromete o acesso à educação, ao lazer, à mobilidade social e à participação política. A isso, a literatura feminista chama de “pobreza de tempo”: uma condição estrutural que nega, sobretudo às mulheres negras e pobres, a chance de viver além da sobrevivência.

Lélia Gonzalez também nos ajuda a romper com uma visão universalizante da maternidade. Para ela, compreender a realidade das mulheres negras exige enfrentar o epistemicídio, a marginalização institucional e a desumanização histórica de seus corpos. Nesse contexto, maternidade não pode ser dissociada de uma estrutura que ao mesmo tempo exige e nega o cuidado.

As mães solo vivenciam múltiplas formas de opressão e negligência institucional. Sem rede de apoio, com responsabilidade integral e em permanente instabilidade econômica, vivem em modo contínuo de sobrevivência. Não se trata apenas de resistência, é uma luta contra o colapso. Uma luta frequentemente romantizada sob o discurso da “força da mãe brasileira”, quando, na verdade, deveria ser reconhecida como reflexo direto da omissão do Estado e da violência estrutural.

Celebrar o Dia das Mães sem reconhecer essas contradições é fechar os olhos para as desigualdades de um sistema que exalta a maternidade no discurso, mas falha em garantir condições dignas para vivê-la. A figura idealizada da mãe permanece como símbolo de afeto e sacrifício, enquanto muitas realidades seguem à margem desse ideal. A mãe real — negra, pobre, periférica — enfrenta, muitas vezes, a indiferença, a desconfiança e, em certos contextos, até a criminalização. O elogio à maternidade raramente se traduz em políticas públicas concretas: o Brasil ainda carece de um sistema nacional de cuidados, tem cobertura insuficiente de creches, licenças parentais desiguais e um mercado de trabalho hostil à parentalidade feminina.

A partir de uma perspectiva interseccional, especialmente da crítica negra formulada por Gonzalez, a maternidade revela não só desigualdades, mas uma arquitetura de poder que define quem pode maternar com dignidade e quem será forçada a fazê-lo sob exploração. Perguntar “quem cuida de quem cuida?” não é um apelo moral — é uma exigência política. É urgente romper com a lógica que individualiza o cuidado, racializa o sacrifício e despolitiza a maternidade.

Mais que flores, essas mães precisam de redistribuição de tempo, renda, poder e reconhecimento. Precisam de políticas públicas universais e focalizadas, que coloquem o cuidado no centro de um projeto democrático, racial e de gênero. O verdadeiro tributo à maternidade não está nas vitrines de maio, mas na coragem de enfrentar a injustiça histórica que atravessa o cotidiano de milhões de mulheres que seguem cuidando — apesar de tudo.

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Last Update: 12/05/2025