O lamento da Olivetti, separada à força da última lauda, ecoava pela redação. Era a hora da pausa, do brinde, naquele breve intervalo que precede o inevitável momento de enfrentar mais uma batalha perdida. Do pai, Giannino, Mino Carta capturou a angústia da profissão. Todos os dias ou todas as semanas, em todos os cantos do mundo, jornalistas perdem a batalha. Perdemos para o tempo e o contratempo, para a roda esmagadora dos fatos, para nós mesmos. Mas, no nosso caso, tudo recomeçava na segunda.

Antes de tombar naquele particular Estreito das Termópilas, à espera da revisão do derradeiro texto da semana, inspirados por uma garrafa de vinho, falávamos da edição, do Brasil e da vida. Quando um repórter celebrado ou um empresário de mídia morria e as hagiografias inundavam o noticiário, eu provocava: “Mino, se um dia você morrer, os obituários dirão que a ditadura durou 21 anos por sua causa. Enquanto os demais lutaram bravamente pela democracia, você, sozinho, sustentava o regime”. Ele ria. Às vezes me lembrava: “Cuidado com a ironia, muita gente é incapaz de entender”.

A hipocrisia brasileira, ou nativa, revolvia suas entranhas. Contra ela, Mino dedicou sua carreira. Munido de uma coerência granítica, lutava contra os moinhos de vento, embora gostasse mesmo era de Sancho Pança. Um de seus contos favoritos, quase uma parábola, de Franz Kafka, tornou-se para mim um guia para diferentes situações. Em resumo, Sancho Pança tinha um demônio, a quem chamou de Dom Quixote.
Nos tristes trópicos, coerência é um valor desprezado. A selvageria premia a adaptação, principalmente em favor do privilégio. Mino pagou um preço, mas não se arrependeu. Quanto mais deliberadamente ignorado pelo resto da mídia, mais estudantes batiam à porta para conhecer sua história e ouvir suas lições, mais sindicatos e entidades, de Norte a Sul, o convidavam para falar da profissão e do Brasil. A coerência garantiu, além disso, a consciência tranquila. Em mais de 70 anos de profissão, nunca se viu obrigado a pedir desculpas. Da ditadura à farsa da Operação Lava Jato, postou-se na margem oposta, do lado certo. A história, cedo ou tarde, lhe deu razão.

De repente, vem à memória a primeira vez que o vi, uma cena digna de Fellini. Ou de Caravaggio. O amontoado de jornais e revistas, as mesas desproporcionais e a iluminação lúgubre da redação de CartaCapital, ainda quinzenal, em um cômodo de uma casa na Avenida Brasil, sede da editora fundada pelo irmão, Luiz, e gerenciada pelos sobrinhos, Andrea e Patricia, reduziam o espaço entre as paredes. No fundo da sala, iluminados por um único feixe de luz que se insinuava pela janela, a Olivetti e a figura atrás da máquina pareciam um só corpo. Era difícil definir quem conduzia quem. Tec, tec, tec. Mino ditava o ritmo, tocava e carregava o piano, como se dá em redações com equipes que se contam nos dedos.

Até então, tinha ouvido falar por alto da fama de irascível do meu novo chefe, temperamento que lhe valeu o apelido de Minotauro. Ao longo dos anos, de diferentes ângulos, vi muitos colegas entrarem em sua sala como se sentenciados a percorrer o labirinto de Minos. Olhos se arregalavam nas bancadas e cabeças se refugiavam nas telas dos computadores quando ecoavam os impropérios contra o Brasil ou contra determinadas figuras da política, do empresariado ou das artes. Poucos entendiam, no entanto, que o sangue genovês ferve em uma temperatura mais baixa. E que a fúria era passageira.

A irritação brotava da infinita esperança. Mino era mais brasileiro do que muitos de nós. Escolheu viver aqui – ele jurava se arrepender, nunca acreditei. Sua fúria se dirigia ao desperdício de dádivas e talentos, fruto do trabalho secular e eficiente de uma elite desprezível e que despreza o País. Ele sonhava com o dia em que o Brasil deixaria de ser um aglomerado para se tornar uma nação, dono de seu próprio destino. Gramsciano, exercitava o pessimismo nas ideias e o otimismo na ação. Bastante otimismo, diria, exercitado e renovado diariamente, apesar das frustrações.

Mino abominava a ideia de ser patrão. Dinheiro não o movia nem o imobilizava. Investiu as parcas economias em CartaCapital. Se fosse necessário, se a equipe assim decidisse, lideraria um piquete contra a própria empresa. Dizia-se anarcossindicalista, não passava de um romântico. Às vezes era tomado por rompantes e, amargurado com a situação do País ou com os percalços da revista, ameaçava demitir-se. Eu perguntava: “Quem vai assinar a sua demissão?”. Na manhã seguinte, lá estava, protegido pela inseparável Olivetti, no centro de seu labirinto, quer dizer, em sua sala.  CartaCapital, que ele considerava a sua melhor obra, nasceu de sua cabeça e atravessou estes 31 anos sobre seus ombros. O legado e a responsabilidade passam agora às mãos da Manuela, há anos empenhada em conduzir a transição para os novos tempos do jornalismo.

Por quase duas décadas, a revista ocupou um andar em um prédio na Alameda Santos de propriedade de Chiquinho Scarpa, que, como manda o figurino de playboy, nunca deu as caras por lá. A poucos metros, o mítico restaurante Massimo, àquela altura uma sombra dos tempos gloriosos, quando era a sala e a cozinha do poder e do dinheiro, era uma extensão do escritório. Às quintas-feiras, pontualmente às 9 da noite, antes de a revista seguir para a gráfica, Mino recebia amigos. Jô Soares, Drauzio Varella, Luiz Gonzaga Belluzzo, Delfim Netto, Rogério Tuma, Juca de Oliveira e Walter Maierovitch, entre tantos outros. Noites memoráveis eternizadas por um barbaresco inesquecível, generosamente ofertado pelos irmãos Venancio e Massimo. Jantares de risadas e discussões, brigas e pazes. Na mesa de sempre, no canto esquerdo da entrada principal, Mino se revelava na plenitude. Firme nas posições, intransigente nos princípios, refinado e culto, magnético, fascinante contador de histórias.

As perdas sequenciais, em curtos intervalos, dos companheiros de estrada Paulo Henrique Amorim e Nirlando Beirão o afetaram profundamente. A morte prematura do filho Gianni, no mesmo período, caiu como uma bola de concreto. A dor, insuportável, “entre o fígado e a alma” obliterou o gosto e o sentido das coisas. Mas o humor volta e meia aflorava. “Já fui Severo Gomes”, brincava. “Hoje em dia estou um Caco Barcellos”. O estilo também, como se percebe na homenagem a Delfim Netto, último texto seu publicado por CartaCapital.

De repente, sou eu quem carrega esse vazio “entre o fígado e alma”. Mino se foi. Nós continuaremos a perder as batalhas, até o apagar das luzes. Em seu nome. Faltou um último abraço, ficaram presas na garganta as palavras finais. O que eu teria dito? Cubra-se de glórias.

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Last Update: 02/09/2025