Crony Capitalism e o Estado Corporativo
por Marlon Cecilio de Souza
A dinâmica do capitalismo global tem passado por transformações significativas nos últimos anos, refletindo mudanças nos acordos comerciais e nas prioridades das nações e blocos econômicos. Se antes o discurso predominante exaltava um mercado global interconectado, com um liberalismo econômico que incentivava a concorrência e a eficiência produtiva, hoje a realidade é outra. Observamos uma crescente fragmentação, na qual países e blocos priorizam seus próprios interesses, adotando medidas protecionistas e fortalecendo políticas industriais internas. Exemplos disso incluem as tensões comerciais entre Estados Unidos e China, as políticas da União Europeia para proteger sua indústria tecnológica e a reformulação do NAFTA para o USMCA, buscando assegurar maior controle sobre as cadeias produtivas dentro da América do Norte.
Dentro desse cenário de mudança, um fenômeno se destaca: o avanço do chamado crony capitalism, ou capitalismo de compadrio. Esse modelo econômico se caracteriza pela proximidade entre grandes corporações e o poder político, onde o sucesso empresarial não depende apenas da inovação e eficiência, mas também de benefícios estatais como subsídios, incentivos fiscais, contratos públicos vantajosos e barreiras regulatórias que dificultam a concorrência.
Historicamente, os Estados Unidos criticaram esse modelo, apontando seus efeitos nocivos em países como Rússia, China e até mesmo o Brasil. Durante décadas, economistas e políticos americanos denunciaram os riscos do capitalismo de compadrio, associando-o à corrupção, à ineficiência econômica e à criação de oligopólios que prejudicam consumidores e inibem a inovação. No entanto, essa crítica tem perdido força à medida que os próprios EUA adotam práticas semelhantes, favorecendo abertamente grandes corporações e empresários influentes.
Um dos casos mais emblemáticos dessa tendência é o de Elon Musk, cuja relação com o governo americano se tornou cada vez mais evidente. Além de ser um dos homens mais ricos do mundo, Musk mantém influência nos altos escalões do governo dos Estados Unidos e de seus órgãos reguladores. Suas empresas, como Tesla, SpaceX e Starlink, recebem contratos governamentais bilionários, subsídios e incentivos, conferindo a ele uma posição privilegiada no mercado. Essa relação entre Musk e o governo exemplifica bem as distorções do crony capitalism: ao invés de deixar a concorrência definir os vencedores do mercado, o Estado escolhe seus campeões, minando o livre mercado.
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O impacto desse favorecimento estatal é considerável. O acesso privilegiado de Musk a recursos públicos cria barreiras para novos concorrentes, tornando o mercado menos dinâmico e mais concentrado. Isso não apenas prejudica o desenvolvimento de novas tecnologias, como também limita a oferta de produtos mais competitivos para os consumidores. Além disso, esse tipo de relação entre governo e grandes empresários pode comprometer a credibilidade do ambiente econômico, afastando investimentos e corroendo a confiança na imparcialidade estatal.
Outro episódio recente que ilustra essa questão é o interesse de Musk em adquirir a OpenAI. Inicialmente criada como uma organização sem fins lucrativos para desenvolver inteligência artificial de maneira ética e acessível, a OpenAI tem passado por um processo de reestruturação para se tornar uma empresa lucrativa. No entanto, a preocupação do CEO da OpenAI, Sam Altman, não está apenas na transformação da empresa, mas no impacto que Musk poderia ter sobre o setor caso assumisse o controle. Em uma recente recusa a uma oferta do bilionário, Altman sugeriu que Musk não tem boas intenções e busca apenas obter uma vantagem competitiva. Essa situação reforça a preocupação com a crescente concentração de poder econômico e tecnológico nas mãos de poucos indivíduos, ampliada pelo apoio estatal que esses magnatas recebem.
Além disso, a influência de Musk dentro do governo americano levanta questões ainda mais sérias. Recentemente, veio à tona que um departamento vinculado a ele teve acesso a dados sigilosos do governo, gerando pedidos de investigação por parte de líderes democratas. Esse episódio exemplifica como a fusão entre interesses privados e poder político pode comprometer a segurança nacional e criar riscos sistêmicos para o próprio funcionamento do Estado.
Os problemas do crony capitalism são amplamente estudados na literatura econômica. O economista Luigi Zingales argumenta que um dos principais riscos desse modelo é a captura do Estado por interesses privados, levando à adoção de políticas que beneficiam uma elite empresarial em detrimento da sociedade como um todo. Joseph Stiglitz, por sua vez, alerta que o capitalismo de compadrio tende a aumentar a desigualdade econômica e reduzir a eficiência produtiva, pois os recursos deixam de ser alocados com base na produtividade e passam a ser direcionados para aqueles com melhores conexões políticas.
Diversos pensadores já advertiram sobre os perigos de um mercado distorcido pelo intervencionismo seletivo. Friedrich Hayek, um dos mais renomados economistas do século XX, principalmente na corrente de pensamento liberal, abordou esse tema em sua obra “O Caminho da Servidão”, argumentando que o uso do governo para beneficiar grupos específicos enfraquece a concorrência e corrompe os princípios de uma economia livre. Essa ideia reflete bem as distorções do crony capitalism: em um mercado verdadeiramente liberal, todas as empresas deveriam competir em igualdade de condições, mas, quando o governo intervém para favorecer certos grupos, a concorrência se torna injusta e o próprio capitalismo perde sua essência.
Diante desse contexto, surge um questionamento inevitável: até que ponto os Estados Unidos ainda podem se apresentar como defensores do livre mercado quando suas ações contradizem esse princípio de maneira tão evidente? O caso de Elon Musk e sua crescente influência sobre o governo americano é apenas um dos muitos exemplos de um fenômeno mais amplo que ameaça a própria lógica do capitalismo competitivo. Para garantir um mercado saudável, é essencial promover transparência, equidade e uma regulação que impeça a fusão entre poder político e poder econômico em benefício de poucos. Caso contrário, o que se consolida é um pseudo-liberalismo, onde grandes magnatas ditam as regras e a inovação e o empreendedorismo genuínos se tornam vítimas do jogo político.
Marlon Cecilio de Souza – Economista (FCE-UERJ) e Especialista em Política e Sociedade (IESP-UERJ). Atualmente trabalha como analista de risco de crédito no The Bank of New York. Pesquisador do Geep.
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