No Brasil, não há limite de tempo gestacional ao aborto induzido nos três casos permitidos por lei: gravidez decorrente de estupro, risco à vida da mãe e anencefalia fetal. Embora pouco frequente, o procedimento nas fases mais avançadas da gravidez afeta de maneira desproporcional as mulheres e meninas em situação de maior vulnerabilidade social.
A Organização Mundial da Saúde recomenda a indução de assistolia fetal nos casos de aborto induzido a partir das 20 semanas de gravidez. No Brasil, a quase totalidade desses casos acontece abaixo de 25 semanas e não há relatos de casos próximos do termo. O procedimento consiste na utilização de medicações para interromper os batimentos cardíacos do feto, visando retirá-lo do útero sem sinais vitais.
Recentemente, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou a Resolução 2378/2024, proibindo a indução de assistolia fetal nos casos de gravidez decorrente de estupro acima de 22 semanas. Qualquer medida disciplinar ou administrativa dela decorrente também foi proibida.
Em defesa da Resolução do CFM, alguns alegam que a IAF é dolorosa para o feto. Em 2022, o Royal College of Obstetricians and Gynaecologists, do Reino Unido, apontou, porém, evidências de que a possibilidade de percepção de dor antes das 28 semanas de gestação é improvável.
O Código Penal, é importante ressaltar, não exige qualquer documento para a realização do aborto legal em caso de gravidez decorrente de estupro, a não ser o consentimento da mulher. Assim, a vítima de violência sexual não tem o dever legal de noticiar o fato à polícia.
O médico e os demais profissionais de saúde não devem temer consequências jurídicas, caso se revele na sequência que a gravidez não foi resultado de violência sexual. Mas, se posteriormente for comprovada a inverdade da alegação da mulher, somente ela responderá criminalmente.
Recomendada pela Organização Mundial da Saúde, a indução de assistolia fetal não causa sofrimento ao feto, indicam as evidências científicas
Acredita-se, no Brasil, que a mulher exposta a “risco à vida” consegue com maior facilidade exercer o seu direito ao aborto do que nos casos de gravidez decorrente de estupro. Na realidade, entretanto, na ausência de normas claras a esse respeito, há grandes limitações à aplicação da lei nesses casos.
Por fim, é importante deixar claro que o art. 154 do Código Penal afirma ser crime “revelar a alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem”. Já o Código de Ética Médica proíbe, no art. 73, “revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão”, permanecendo essa proibição mesmo que o fato seja de conhecimento público ou a paciente tenha falecido.
*Obstetra, diretor do Centro Universitário Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), serviço de referência ao atendimento ao aborto legal, e professor da Universidade de Pernambuco (UPE).
Publicado na edição n° 1316 de CartaCapital, em 26 de junho de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Cronômetro perverso’