Andrei Konstantinovich Siniavski (1818-1883) nasceu na província de Oriol, na vasta propriedade rural de sua mãe, uma mulher autoritária e brutal, que exercia poder tirânico sobre os seus servos e filhos.
O primeiro livro do escritor, denominado “Memórias de um caçador” (1852) reúne contos de denúncia do regime de servidão, já consagrando de imediato o artista perante o público russo.
Neste mesmo ano de 1852, após a divulgação de um panfleto com críticas sociais, por ocasião do enterro do escritor Nikolai Gógol, Siniavski foi preso e depois confinado em sua propriedade rural por mais de um ano.
Não seria, contudo, correto, caracterizar a literatura do nosso escritor como um mero instrumento de crítica política.
O que caracteriza sua literatura é um realismo decorrente de estudo cuidadoso da vida comum e popular da Rússia, relacionados com elementos líricos e poéticos. Seus livros envolvem a combinação justa entre a beleza e a realidade na medida em que no escritor existe uma fusão entre um bom poeta e um bom observador.
De acordo com o escritor Harry James, que conheceu pessoalmente Siniavski, o eixo fundamento das suas histórias era não tanto os enredos, mas a mais profunda representação das personagens.
“A primeira forma em que um relato surgia para ele era na figura de um indivíduo, ou numa combinação de indivíduos, que ele desejava ver em ação, convicto de que tais pessoas deveriam fazer algo muito especial e interessante. Elas se erguiam à sua frente bem definidas, nítidas, e ele queria conhecer, e mostrar, o mais possível de sua natureza.”
“Diário de um Homem Supérfluo” foi publicado em 1850, doze anos antes do seu mais famoso romance “Pais e Filhos” 1962.
Consta que o “Diário” não foi recepcionado bem pela crítica, e isso por uma razão simples: a história de Tchulkatúrin narrada em forma de diário foi totalmente alterada e modificada pela censura do czar Nicolau I (1796/1855) tornando o texto publicado totalmente incompreensível à luz do original.
O contexto histórico da Rússia daquele período é importante para a compreensão do que o escritor entendia como “homem supérfluo”, no caso, o personagem representativo da intelectualidade daquele país de meados do XIX.
Em 1812, o czar Alexandre I realiza uma grande campanha patriótica para recrutamento de pessoas para a luta contra a invasão napoleônica. Membros de todas as classes sociais foram mobilizados, se tratando da primeira vez em que a sociedade russa se reuniu enquanto nação para engajamento na luta contra o inimigo externo.
A vitória sobre a França e a consequente marcha sobre Paris fez com que os jovens oficiais tivessem contato com a Europa ocidental, que, diferentemente da Rússia, já havia passado pelas Revoluções Liberais, nitidamente em 1789, quando se colocou um fim no regime absolutista. Ao passo que a queda do absolutismo na Rússia se daria apenas em fevereiro de 1917, na primeira etapa da Revolução Russa.
Esse acesso daqueles oficiais ao país vizinho europeu criou uma consciência na intelectualidade russa do seu atraso cultural, o que culminou na Revolução Dezembrista (1825) que unificou uma pequena nobreza instruída para um levante contra o regime czarista, exigindo reformas liberais, o fim da servidão e a adoção da constituição.
O homem supérfluo aparece pouco tempo depois: o movimento de 1825 foi massacrado (a abolição da servidão só ocorreria quase quarenta anos depois) e seus líderes foram levados à forca. Na sequência, o czar Nicolau I aumenta a censura e a perseguição política, especialmente a partir de 1845, diante do medo do influxo das revoluções europeias, também conhecidas como a Primavera dos Povos.
O homem supérfluo é o homem paralisado, incapaz de colocar os seus ideais em ação. Diante da feroz repressão do czar, a geração se formou no ceticismo, na amargura e no isolamento. Os valores humanitários aprendidos na Europa pareciam incompreensíveis aos russos. Trata-se de uma pequena aristocracia que se sentia estrangeira em seu próprio país.
O livro em comento corresponde a um diário escrito pelo homem supérfluo Tchulkatúrin, que dá início ao relato de sua vida num dia 20 de março, logo após seu médico informa-lhe que sua doença é irremediável e que fatalmente irá morrer.
“O doutor acaba de sair da minha casa. Consegui, afinal, o que queria! Por mais que dissimulasse, não pôde, por fim, continuar escondendo. O certo é que morrerei em breve, muito em breve. Os rios descongelarão e é provável que eu me vá com a última neve…. para onde? Sabe Deus! Também para o mar. Pois bem! Se é para morrer, que seja na Primavera”.
O início da morte do protagonista coincide com o fim do inverno e início da primavera russas. Ou seja, no momento em que a natureza renasce, se inicia a trajetória da morte do homem supérfluo. A cada capítulo do diário, o protagonista percebe o degelo gradual da paisagem: sua vida triste vai se extinguindo aos poucos como o gelo do inverno Russo.
Tratou-se tanto de uma vida como de uma morte tristes.
Morreu isolado num casebre caindo aos pedaços em meio aos resmungos intermináveis de uma velha criada, que desejava a sua morte veladamente para ficar com o pouco da herança de Tchulkatúrin, que morre sem filhos e sem parentes.
Ao escrever a sua história no Diário, o narrador chega à conclusão de ser um homem supérfluo, ou seja, que não se diferencia em nada de outras pessoas: uma vida de ocupações modestas e prazeres comedidos. Cumpre um papel inútil, de um mero figurante da vida. Compara-se, neste sentido, como um quinto cavalo amarrado numa carroça apenas movida por quatro animais. O não pertencimento à sociedade equipara-se àqueles jovens aristocratas influenciados por ideias liberais mas paralisados e acovardados diante da ditadura czarista.
Sua inabilidade para a tomada de ações contundentes se revela na paralisa perante a mulher que ama e a quem não é correspondido.
De maneira não premeditada, insulta um pretendente da mulher amada e é não intencionalmente lançado num duelo do qual se sai humilhado: não acerta o tiro no oponente que por sua vez, num ato de grandeza, deixa de mata-lo quando teve a oportunidade. Perdoa-o, e para completar a sua humilhação, o oponente ainda conquista o coração da mulher amada.
O homem supérfluo é um precursor de outros personagens da literatura russa, notadamente o protagonista de “Memórias do Subsolo” de Dostoievski. Além do tipo representativa dos intelectuais da época, o livro é uma grande reflexão sobre a morte: as recordações antes do momento final são como cutucar uma ferida, ou seja, pode tanto proporcionar prazer como dor.