Crônica Satírica: O Sofrimento do Rentista Sensível
por Fernando Nogueira da Costa
Apresento uma narrativa satírica em forma de crônica sobre a lamúria ressentida de um economista-chefe de tesouraria de um pequeno banco, ou seja, uma banqueta. Reclama diante do colapso moral de um país onde… tudo parece estar melhorando — menos o pretexto para manter os juros nas alturas.
Crônica Satírica: “O Sofrimento do Rentista Sensível”
Ou como é difícil multiplicar o patrimônio quando o país insiste em dar certo.
Acordou cedo, como todo homem sério de O Mercado. Tomou seu café com leite tipo A, abriu o Valor como quem abre a Bíblia e leu com pavor as manchetes do dia.
“IPCA sobe abaixo do previsto”.
“Queda na taxa de desocupação e na informalidade do trabalho para menor nível da série histórica.”
“Pobreza cai pelo quarto ano seguido no Brasil”.
“Queda da desigualdade de renda em 2024”.
“Brasil melhora em IDH – Índice de Desenvolvimento Humano”.
Ele quase derrubou o croissant na mesa da varanda com vista para o Ibirapuera.
— Isso é um desastre! — exclamou, passando as mãos no cabelo engomado. — Como vou justificar 14,75% de juros com esse nível de estabilidade miserável?
Subiu o edifício na Faria Lima como se fosse máquina
Ergueu no escritório quatro argumentos sólidos
Palavra com palavra num desenho mágico
Seus olhos embotados de cifrões e lágrima
Era dura a dor de não poder subir os juros sem motivo.
Seu banco, modesto, administrava sua riqueza pessoal de R$ 150 bilhões — quantia suficiente para comprar algumas Ilhas Cayman… e dois ou três senadores. O plano era simples: manter os juros em dois dígitos e assistir ao patrimônio multiplicar-se com a graciosidade de uma planilha bem-feita.
A calculadora financeira estimava: 12 n 1,15 i 150.000.000.000 VP => VF 172.000.000.000. Renda passiva de 22 bilhões de reais em um ano! Só.
Mas aí veio o problema: a economia, contra toda a lógica e todas as previsões da turma da Faria Lima, começou a melhorar durante o novo governo Lula. Culpa do PT!
O salário dos pobres, esses ingratos, subiu acima da inflação dos alimentos. A fome, essa aliada invisível da estabilidade fiscal, despencou.
Pior: a desigualdade caiu.
— Onde vamos parar? — suspirou ele, angustiado. — Daqui a pouco vão querer baixar os juros só porque o país melhorou! Isso é populismo de esquerda!
Sem ter o que fazer com tanta boa notícia, ele resolveu agir. Pegou o telefone e ligou para seu colunista preferido no jornal Valor (poderia ser para os de O Globo, Estadão ou Folha de São Paulo):
— Publica aí: “O Mercado está preocupado”.
— Preocupado com o quê?
— Com o estado de confiança.
— Confiança no governo?
— Pelo contrário, desconfiança diante o risco fiscal virar risco cambial.
— Mas, dotô, o dólar tá despencando em todo o mundo…
— Aqui é diferente, se o juro não se mantiver disparatado, não atrairá capital mesmo perante o risco soberano de não haver calote em títulos em moeda nacional emitidos pelo Tesouro Nacional.
E assim saiu mais uma série de editoriais no pautado jornalismo econômico brasileiro:
“A inflação está baixa, mas o risco fiscal permanece.”
“A renda está subindo, mas o país ainda inspira desconfiança.”
“O desemprego caiu, mas o risco moral da prosperidade pode corroer o mercado.”
Era a arte do lamento performático: fingir medo enquanto o lucro (e a barriga) engorda.
O grande sonho do “nosso herói” não era salvar a economia. Era elevar a carteira do banco de R$ 150 bi para R$ 172 bi. E não por crédito produtivo para alavancagem financeira da produtividade e da inovação tecnológica. Não. Isso dá trabalho. Apreciava mais a renda passiva.
Renda passiva é um fluxo de receita gerada por ativos financeiros ou imobiliários sem exigir trabalho ou esforço contínuo por parte do proprietário para continuar a gerar dinheiro. Em vez de o indivíduo trabalhar diretamente para gerar essa receita, os seus ativos, como investimentos financeiros ou propriedades imobiliárias, produzem a renda.
Ele queria crescer com juros altos e liquidez estéril, conjunto capaz de fazer os títulos de dívida pública brasileira parecerem frutos de milagre.
— A renda do pobre subiu, mas e o meu CDI, quem protege senão eu?!
E chorou, discretamente, ao ver a manchete de mais um mês com inflação se aproximando do teto da meta irrealista, implantada pelo lobby de gente como ele. Malditos dados. Sempre atrapalhando a narrativa.
Epílogo: A comédia do rentismo sem causa
Nos bastidores, enquanto o PIB surpreendia positivamente pela quinta vez, enquanto a Bolsa batia recorde, enquanto os lucros empresariais explodiam, ele se preparava para mais uma entrevista.
No camarim da emissora pró-mercado, olhou-se no espelho e ensaiou com convicção:
— O Brasil inspira cautela. A confiança do investidor precisa ser reconquistada. O Banco Central deve agir com responsabilidade…
Respirou fundo e entrou no estúdio, pronto para lamentar mais uma vez o apocalipse econômico imaginário – e transplantado para as manchetes do jornalismo descolado da realidade.
Moral da história?
Nada deixa um banqueiro de negócios mais nervoso senão um país capaz de dar certo sem ele ganhar mais dinheiro ainda.
Fernando Nogueira da Costa – Professor Titular do IE-UNICAMP. Baixe seus livros digitais em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: [email protected].
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