Se alguém ainda duvida sobre a importância geopolítica dos Brics, os ataques de Donald Trump ao bloco não nos autorizam mais a ter dúvidas.
Dei-me ao trabalho de examinar as postagens de Trump no Twitter desde a sua vitória eleitoral, no dia 5 de novembro de 2024.
A maior parte são anúncios oficiais das indicações para os principais cargos da república. Há também algumas diatribes infantis contra a “ultra-esquerda” americana.
A propósito, para a nova direita populista, não existe esquerda, e sim apenas “ultra-esquerda”. Até mesmo os warmongers reaças do partido democrata são classificados como “ultra-esquerda”. Para você ver o grau de demência a que chegou o debate político nos EUA.
A primeira postagem de Trump que poderíamos classificar como política, numa acepção séria, consequente, do que entendo como política, foi publicada às 20h57 (hora de Brasília) do dia 30 de novembro de 2024.
E tratou-se de um ataque e uma ameaça aos Brics.
Donald J. Trump (@realDonaldTrump):
A ideia de que os países BRICS estão tentando se afastar do dólar enquanto nós ficamos parados e assistimos ACABOU. Exigimos um compromisso desses países de que eles não criarão uma nova moeda BRICS, nem apoiarão nenhuma outra moeda para substituir o poderoso dólar americano ou enfrentarão tarifas de 100% e devem esperar dizer adeus à venda para a maravilhosa economia dos EUA. Eles podem ir encontrar outro “otário! Não há chance de que os BRICS substituam o dólar americano no comércio internacional, e qualquer país que tente deve acenar adeus à América.
20h57 · 30 de novembro de 2024 ·
A maneira chula, depreciativa, vulgar, com que Trump trata nações soberanas que abrigam 45% da população mundial (e isso contando apenas os nove membros plenos dos Brics), contra 10% do G7, certamente não é uma jogada inteligente de softpower da Casa Branca.
Na verdade, em alguns aspectos parece desespero. Em outros, uma situação irônica.
O lado desesperado é que o fenômeno da desdolarização já vem acontecendo há tempos, e vem se acelerando nos últimos anos. Em boa parte com ajuda da própria América.
Desde o final da segunda guerra mundial, os EUA vem tentando “moldar” o mundo à sua imagem e semelhança. A responsabilidade americana na organização de golpes de Estado, instalação de ditaduras, mudanças de regime, processos de desestabilização política, guerras híbridas, é amplamente documentada. Entretanto, pouco se fala da principal arma usada pelo império para subjugar países que, por uma razão ou outra, tentam se desenvolver de maneira independente dos ditames de Washington: a guerra econômica.
O historiador da universidade de Cornell, em NY, Nicholas Mulder, publicou em janeiro de 2022 um livro intitulado “A ascensão das sanções como ferramenta de guerra moderna”, que traça as origens dessa ferramenta desde antes da I Guerra Mundial. É um troço assustador. Os países “desenvolvidos”, especialmente os EUA, Reino Unido e França (embora esses dois últimos com um papel cada vez mais subalterno) construíram, dentro de seus próprios ministérios financeiros e comerciais, poderosíssimas máquinas de destruição em massa contra qualquer economia no mundo.
Dois fatores recentes, contudo, fizeram com que o chamado “Ocidente coletivo”, ou seja, o grupo de países liderados pelos EUA, escalassem a guerra econômica contra o resto do planeta a um nível jamais visto antes.
O primeiro fator foi a guerra na Ucrânia, que deflagrou um conjunto insanamente elevado de sanções contra a Rússia e contra qualquer país ou empresa que ouse negociar com a Rússia.
Aliás, para se ter uma ideia do grau de prepotência dos EUA, a Casa Branca regularmente emite ordens de exceção que autorizam que empresas americanas, e somente elas, não sejam submetidas as sanções e possam comercializar livremente com empresas venezuelanas e russas, por exemplo.
O segundo fator é a guerra comercial dos Estados Unidos contra a China, que é incrivelmente descolada de qualquer fundamento moral, visto que o objetivo declarado dos EUA é apenas conter o desenvolvimento tecnológico do país.
Centenas de empresas, algumas delas tão grandes como países, como a holandesa ASML, e a taiwanesa TSMC, a primeria fabricante de impressoras de chips, e a segunda de chips avançados, tem sido proibidas de vender para a China, sendo que a China é o seu principal mercado!
Todas essas sanções vem empurrando uma quantidade cada vez maior de países e empresas para longe do dólar.
O desespero de Trump nasce dessa constatação. Não há mais volta.
Em setembro de 2023, Brasil e China completaram a primeira operação comercial realizada somente com moedas locais dos países — yuan e real. A informação foi confirmada pela mídia estatal chinesa e pela CNN. Foram 43 contêineres de celulose, vendido pelo Brasil à China, da empresa Eldorado Brasil.
Os aspectos financeiros da operação contaram com o apoio e a organização do Banco da China Brasil (BOC Brasil), uma instituição financeira sediada no Brasil, cujo acionista principal é o governo chinês.
A operação toda é muito simples. A mercadoria foi enviada do Porto de Santos ao Porto de Qingdao, na China em agosto de 2023. No mês seguinte, o BOC Brasil recebeu uma carta de crédito em moeda chinesa, emitida pelo importador.
O BOC Brasil, após notificar a Eldorado e revisar documentos, converteu imediatamente o reminbi recebido em reais e o enviou à conta local do cliente. Ponto.
O aspecto irônico da postagem de Trump é a referência aos Brics. Havia, de fato, uma grande expectativa de que esse último encontro do bloco em Kazan, Rússia, elegeria a desdolarização como o tema central. Mas a declaração final foi tímida nessa questão, até porque os membros ainda não encontraram nenhuma fórmula consensual.
Ou seja, Trump atacou um fantasma.
Os Brics ainda estão muito longe de criarem uma moeda própria. O que mais se avançou no encontro foram estudos para desenvolver tecnologias financeiras para substituir o Swift (sistema de pagamento internacional, em dólar), de maneira justamente a permitir que os países membros ou parceiros dos Brics, fiquem menos expostos a um sistema que tem sido igualmente sequestrado por interesses militares dos EUA.
Neste sentido, as ameaças de Trump apenas reforçam a legitimidade da preocupação de todos esses países, e a necessidade de se desenvolver espaços de comércio mais seguros, ou seja, menos vulneráveis aos caprichos de um império desesperado e decadente.
Há outra camada de ironia nas ameaças de Trump. Ele diz que os países que ousarem desenvolver estratégias comerciais independentes do dólar não poderão mais vender produtos aos americanos. Mas ao falar isso, ele prejudica o próprio… dólar. Quem quiser vender produtos aos EUA receberá os valores em dólar, e isso ajuda o dólar. Mas se eu não vendo mais nada para os EUA, porque o presidente de lá deu um chilique, então eu terei que vender para outros países, com uma possibilidade cada vez maior de que a negociação seja feita com uso das moedas locais.
Ademais, é curioso que Trump entenda as importações de bens e serviços dos americanos como um “favor” que os EUA fazem ao resto do mundo. A histeria tarifária do establishment político americano é tão obviamente autodestrutiva que dá pena. Ou melhor, não dá pena, porque o dano será merecido.
Neste sentido, é uma ótima notícia para o mundo que a primeira manifestação política — e geopolítica — de Donald Trump, após sua vitória eleitoral, seja um ataque tão virulento aos Brics, porque se trata, por qualquer ângulo que se analise, de um tiro no próprio pé de um império que já não andava bem das pernas.