Crítica à ciência: uma herança histórica da esquerda, atualmente apropriada pela extrema direita
por Luís Carlos Silva
Não há dúvidas sobre a importância da ciência para a humanidade. Com os avanços científicos, pudemos superar crendices das diferentes religiões e do senso comum, compreendendo a natureza a partir de um viés racional, em detrimento de explicações míticas.
Uma chuva, por exemplo, não é ação de intervenções metafísicas, mas consequência do ciclo evaporação/condensação/precipitação. Do mesmo, quando chegamos a um determinado lugar pela primeira vez, e temos a sensação de já ter ido lá (déjà-vu), não se trata de indício de vidas passadas, mas falhas na interpretação da nova experiência em nossos circuitos cerebrais.
No entanto, como todo empreendimento humano (ou, como dizia Nietzsche, demasiadamente humano), a ciência não é infalível. Em sociedades capitalistas, conforme já advertiu Althusser, a ciência é um dos mecanismos ideológicos da dominação burguesa.
Essa associação histórica entre classe dominante e conhecimento científico fez com que a esquerda política se levantasse com uma das principais vozes críticas à ciência. Também na academia há importantes autores que se propuseram a debater a suposta neutralidade científica, como Thomas Kuhn, Paul Feyerabend e Bruno Latour.
Por outro lado, à direita do espectro político, há uma crença histórica nos poderes da ciência, sobretudo na corrente filosófica conhecida como “positivismo”, utilizada para corroborar acriticamente todos os progressos da humanidade (sem levar em consideração seus efeitos colaterais para as populações mais vulneráveis).
Já nos últimos anos, com a esquerda, em sua maioria adaptada ao status quo, mergulhada no identitarismo e sem a capacidade questionadora de outrora, coube à extrema direita preencher a lacuna de principal setor crítico à ciência.
Como sabemos, os adeptos da extrema direita atual – seguidores de Bolsonaro, Trump e Milei – não são conhecidos por suas capacidades cognitivas. Pelo contrário, eles tendem a aceitar explicações simplistas para todo tipo de fenômeno social (evidentemente, desde que vá em encontro a determinado viés ideológico).
Nessa realidade paralela, a ciência não seria parte da dominação burguesa, como denuncia a esquerda, mas está a serviço do “globalismo”; “tese” que sustenta discursos antivax e terraplanistas.
Esse tipo de postura pode ser inofensiva e apenas motivos de chacota –os terraplanitas, por exemplo – ou ter efeitos trágicos na prática, como foi o caso dos negacionistas no contexto da pandemia da Covid-19.
Além disso, no presente debate público, devido a inércia da esquerda anteriormente citada, quem minimante criticar a ciência corre a sério risco de ser rotulado como “extrema direita”. Denunciou as falcatruas da indústria farmacêutica; automaticamente é antivax. Questionou cientistas do IPCC da ONU; logo é negacionista climático. E por aí vai.
Diante desse cenário, ou a esquerda recupera sua antiga postura questionadora e antissistema, ou os setores da ciência que estão unicamente a serviço do grande capital continuarão avançando sem maiores problemas e seus críticos vistos como indivíduos excêntricos, que usam chapéu de alumínio e apresentam posicionamentos exóticos.
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Luís Carlos Silva é professor da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ)
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