Em abril, lembramos o golpe civil-militar de 1964. Civil-militar, porque se os militares assumiram o poder, tiveram cúmplices entre os civis. Dentre esses, o segmento religioso teve um bom número de lideranças que apoiaram o regime de exceção. Integrantes de comunidades religiosas, contrários à ditadura, foram delatados por quem, em outros tempos, compartilhava a mesma fé e comunidade.

A Marcha da Família com Deus pela liberdade, organizada por senhoras católicas, percorreu as ruas de São Paulo dias antes do golpe. O conteúdo das narrativas pode ser lido, ainda hoje, nas redes sociais de cristão reacionários: João Goulart (Jango), seria um “esquerdista” que estaria representando interesses comunistas, antagônicos à crença dos defensores da família. Alguma semelhança com o que a extrema-direita tem veiculado atualmente? Embora os meios de comunicação tenham mudado, o conteúdo é muito familiar: há décadas, a oposição aos interesses da elite é considerada uma falha de caráter, um ataque às famílias e, portanto, a destruição da sociedade e seus vínculos afetivos.  

Essa narrativa, sedimentada no imaginário social brasileiro, traz conforto para pessoas que têm na família seu lastro de humanização e segurança. Entender a vinculação, quase que secular, do comunismo à “destruição” das famílias, é importante para pensarmos estratégias para combater narrativas elitistas que vão na contramão dos direitos humanos e sociais.

Em um país, cuja colonização foi cristã, está na base do estabelecimento da ordem, relacionar a confissão religiosa à conduta moral é extremamente eficaz para um projeto de nação que quer dominar a população. Fazer da religião uma régua moral, com narrativas de conforto e segurança, é uma ferramenta poderosa de controle social. 

A religião cristã, com seus dogmas, interdições e permissões, é exercício de poder. Assim, para se manterem no poder, religiões poderosas sempre estarão do lado de quem está no poder político. Se o poder vier pela oposição ou pelo apoio a um governo, ali estarão. Precisamos pensar o que a religião oferta para os fiéis, que um programa democrático, progressista e igualitário não oferece. 

Precisamos mudar os óculos de leitura do mundo, acredito ser equivocado pensar que as pessoas que confessam religiões colonizadoras, exploradoras e reacionárias são alienadas ou uma espécie de mau caráter. O cristianismo oferece um lugar no mundo, humanização, esperança e desejo de vida, mesmo que essa vida seja vindoura, após a morte. A pergunta que precisamos nos fazer é: como tornar nosso programa político propositivo o suficiente para que as pessoas se sintam seguras, humanizadas e esperançosas?

É muito difícil traduzir para um programa abstrato, de denúncia de injustiças e de combate à exploração da classe trabalhadora, os anseios mais concretos da vida vivida. O chão da vida deve ser a base de qualquer programa político. E as pessoas devem encontrar respostas neste programa para seus problemas cotidianos.

O cristianismo tem respostas para a dor, para a família, para as contradições da vida, dentre outras amarguras humanas. Como devemos traduzir nosso programa para que ele se vincule com as necessidades cotidianas da população? Se pensarmos a família como um sujeito político, objeto de políticas públicas como moradia, educação, família, lazer, cultura, trabalho e não apenas como uma unidade de medida moral, podemos tentar trilhar um caminho de diálogo. O desafio, então, é mostrar que a defesa da família, passa por uma sociedade justa e igualitária.

Em Procurando Deus no Brasil, John Burdick se faz essa pergunta: por que a teologia da libertação que produzia uma teologia para a Igreja do Povo, não teve aderência do povo sobre o qual ela se propunha a pensar? Ao passo que, as igrejas pentecostais angariavam tantos fiéis nas bases religiosas, que outrora foram católicas? A partir de seu trabalho de campo em Duque de Caxias, no final da década de 1980, percebeu que nas Comunidades Eclesiais de Base, espaços nos quais a Teologia da Libertação era difundida entre as bases religiosas, não havia espaço para que as pessoas falassem da vida concreta.

Uma mãe que queria desabafar sobre sua relação com os filhos, ou alguém que estava passando por uma doença e queria trazer aquela situação para compartilhar com o grupo. A problematização das questões sociais, coletivizou de tal modo a fé, que as pessoas não sentiam suas questões pessoais incluídas nestes espaços de espiritualidade. 

É um equilíbrio difícil, fazer o debate da coletividade sem deixar de olhar as pessoas que estão ao nosso redor, como pessoas com suas particularidades e anseios. A religião, embora seja um dispositivo de controle social em massa, tem a capacidade de parecer que está conversando com cada pessoa. As pessoas se sentem vistas, importantes e acolhidas. Como podemos competir com essa sensação? Vale o debate… 

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Last Update: 14/04/2025