Crise política e disputa ideológica na África: um olhar a partir de Moçambique
por Marílio Wane
Moçambique tem vivido, desde outubro de 2024, uma crise política e de direitos humanos sem precedentes na sua jovem História como nação independente e soberana. Tal crise ocorre num momento particularmente importante e de grande dimensão simbólica: a celebração dos cinquenta anos de independência, assim como as outras ex-colônias portuguesas – Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau (1973) e São Tomé e Príncipe – no continente. Embora cada um destes países constitua uma realidade única e singular, os seus processos de libertação e, posteriormente, de construção nacional destacam-se por terem ocorrido de forma articulada e relativamente sincrônica. Em linhas gerais, após o processo de luta armada pela libertação contra um inimigo comum, seguiu-se a instauração de regimes de partido único de inspiração marxista-leninista, alinhados ao bloco socialista, no contexto da Guerra Fria. Igualmente simultâneo foi o abandono desta ideologia por pressão das políticas de reajustamento estrutural impostas pelo Banco Mundial e pelo FMI, na segunda metade da década de 1980, acompanhadas pela instauração de democracias multipartidárias e economia de mercado.
Nos casos de Moçambique e Angola, os países de maior território, população e economia dentro deste conjunto de países, os movimentos de libertação – Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) e MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), respectivamente – tornaram-se os partidos hegemônicos, desde 1975. Efetivamente, governam a partir de um controle quase que absoluto sobre o aparelho de estado, exercendo influência em praticamente todos os setores da vida pública. Disto resultou uma cultura política notadamente autoritária, reflexo da própria origem militar destes movimentos, que viria a se reproduzir na administração do país. Durante boa parte destas cinco décadas, a sua legitimidade vinha se sustentado por conta da memória da luta de libertação; porém, nos últimos anos, tal hegemonia vem sendo contestada por diversos fatores, dentre os quais, o desgaste natural do tempo.
Neste sentido, a crise pós-eleitoral que se verifica em Moçambique apresenta-se como um importante sintoma de um problema mais amplo no continente: o questionamento da legitimidade dos antigos movimentos de libertação. Em termos concretos, as sétimas eleições presidenciais, realizadas a 9 de outubro foram amplamente contestadas devido aos inúmeros indícios de fraude em todas as etapas do processo. De forma mais veemente em relação aos pleitos anteriores, desta vez, a desconfiança foi para além dos tradicionais opositores do regime, incluindo amplos setores da sociedade civil e até mesmo, da comunidade internacioal (que, via de regra, faz vista grossa às frequentes denúncias de fraude). Enfim, após a proclamação oficial dos resultados, que deu larga vantagem ao candidato da Frelimo, Daniel Chapo (65,17% dos votos) contra Venâncio Mondlane (24, 19%), o principal líder da oposição, seguiu-se uma onda de protestos que, há seis meses, levaram o país a uma situação de quase ingovernabilidade.
Lideradas por Mondlane, que se autoproclamou presidente do país e instituiu uma espécie de “governo paralelo” através das redes sociais, tais manifestações de revolta popular tem se caracterizado por ações como interdição das vias públicas, paralisação do trabalho e das atividades alfandegárias e portuárias, entre outras. Em muitos casos, os protestos redundaram em episódios de violência, com destruição de bens públicos e privados, ao que as autoridades policiais responderam com violência desproporcional, incluindo mortes, prisões arbitrárias e perseguição política.
Para além do debate sobre a transparência eleitoral propriamente, fato é que as condições de vida dos moçambicanos tem se deteriorado de forma dramática nos últimos anos. Diante de tão amplo descontentamento popular, a liderança de Mondlane como o principal opositor político do regime tem se mostrado um verdadeiro fenômeno, devido ao seu carisma, capacidade de articulação interna e externa e apelo midiático. Com grande desenvoltura especialmente na imensa maioria jovem da população – deseperançada e assolada pelos flagelos do desemprego, da fome e da violência – Mondlane tem mobilizado a sociedade sobretudo através das redes sociais, a partir de “onde” convoca os protestos e emite “decretos presidenciais”, acatados sob a forma de desobediência civil. Por fim, é também pastor evangélico, refletindo o largo crescimento do neopentecostalismo em todo o continente, que possibilita o amplo convencimento das massas também no contexto político.
A combinação destes últimos aspectos tem contribuído para a sua associação com a rede de alianças da extrema-direita global. Efetivamente, tal desconfiança não é infundada. Durante a campanha eleitoral de 2024, Mondlane teve encontros com líderes do Partido Chega em Portugal e fez elogios públicos a figuras como Jair Bolsonaro e Donald Trump. Se por um lado, pode se tratar de alianças estratégicas com os opositores dos simpatizantes históricos da Frelimo em outras partes do mundo, por outro lado, tais movimentações apontam para novas formas de inserção da política africana no jogo político a nível global.
Embora seja difícil falar de “África” na generalidade, dada a imensa diversidade cultural e sociopolítica existente no continente, alguns processos podem ser compreendidos em conjunto por conta das diferentes maneiras como os países se articulam entre si e com o resto do mundo. Num momento em que observa-se uma ampla reconfiguração das forças geopolíticas, com a superação do ordem bipolar em direção a uma prometida ordem multipolar, as velhas estruturas de poder no continente africano veem-se igualmente desafiadas diantes destes novos cenários. Neste sentido, provavelmente o caso da AES – Aliança dos Estados do Sahel – seja o exemplo mais eloquente do fenômeno. Como pacto de defesa mútua estabelecido entre Mali, Níger e Burkina Faso, trata-se de uma ação coordenada com o objetivo manifesto de eliminar a influência do Ocidente resultante do colonialismo francês na região e anteriormente viabilizada pelas elites políticas locais, depostas por golpes militares. Ainda mais emblemática dos propósitos deste movimento foi a decisão unilateral de abandonar a CEDEAO, o bloco de cooperação regional, sob a acusação de que esta seria uma organização manipulada pelo Ocidente, sob a liderança da Nigéria.
Finalmente, um pouco por todo o continente e sob diferentes formas, tem se assistido a diversos movimentos de contestação dos regimes políticos hegemônicos há décadas, marcados por significativos protestos populares contra o autoritarismo, corrupção e desigualdade social em países como Quênia, Nigéria, Senegal, entre outros. Por exemplo, na África do Sul (um dos países mais ricos e influentes do continente, membro fundador dos BRICS), o descontentamento popular rfeletiu-se nas eleiçoes de abril de 2024, nas quais o histórico ANC de Nelson Mandela, vencedor do pleito, viu-se obrigado a fazer um governo de coalizão com o DA, o partido da minoria branca.
Diante de tal cenário, coloca-se a questão de qual será a direção seguir em termos ideológicos, não apenas no âmbito das relações dos países africanos entre si, mas especialmente no que diz respeito à sua relação com o resto do mundo. O caso de Moçambique ilustra bem este dilema, na medida em que o país vê-se confrontado com a notória contestação a um já ancient régime, mas entretanto, sem alternativas progressistas palpáveis e flertando com o risco de soluções potencialmente autoritárias. Assim como os abundantes recursos naturais, o campo ideológico africano vem sendo ferozmente disputado no âmbito da correlação de forças ao nível geopolítico, que procuram se aproveitar do vácuo de legitimidade que tem se observado neste momento de flagrante transformação histórica. Certamente, este será um dos temas de maior reflexão para a sociedade moçambicana, perante o marco simbólico dos 50 anos da sua existência.
Marílio Wane – Mestre em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia e pesquisador na área de patrimônio cultural em Moçambique
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