A crise humanitária na Faixa de Gaza alcança níveis críticos, com agravamento da insegurança alimentar, colapso dos serviços básicos e bloqueios à entrada de ajuda internacional.
Desde o início do conflito em outubro de 2023, a população do enclave enfrenta restrições severas ao acesso a alimentos, medicamentos e infraestrutura, sem perspectiva de alívio.
O governo de Israel autorizou a entrada de cem caminhões com alimentos na terça-feira (20), mas apenas uma parcela foi efetivamente liberada, número considerado insuficiente diante da demanda estimada em 300 veículos diários para atender os mais de dois milhões de habitantes da região.
Reportagem do jornal O Globo revela relatos de civis palestinos sobre a escassez de alimentos e a destruição generalizada.
“Meus filhos vão para a cama com fome”, disse um pai à BBC após ver o filho de seis anos, Ismail Abu Odeh, chorar ao não conseguir se alimentar durante uma entrega de comida no norte de Gaza. Segundo ele, “por vezes me sento e choro como um bebê se não conseguir levar alimentos para eles”.
A situação alimentar foi classificada como a mais grave pela Classificação Integrada de Fases de Segurança Alimentar (IPC), consórcio apoiado pelas Nações Unidas.
O relatório mais recente aponta que 470 mil pessoas enfrentam risco extremo de fome e praticamente toda a população vive em insegurança alimentar. A retomada dos bombardeios por Israel após o colapso do cessar-fogo em março intensificou o quadro.
“Quando surgiram as notícias sobre o cessar-fogo estar por um fio, as mães ao meu redor relataram novamente a escrever os nomes nos antebraços dos filhos”, afirmou Amal, integrante de uma organização da sociedade civil em Gaza, ao Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos. Ela descreveu a realidade atual: “não há casas, nem água, nem eletricidade. Quem ainda fala dessas coisas em 2025?”.
Ruth Barros, enfermeira brasileira da organização Médicos Sem Fronteiras, esteve em Gaza entre fevereiro e abril. Ela relatou a rápida deterioração da situação alimentar: “As proteínas foram as primeiras a acabar, depois as frutas e os vegetais. E por fim o pão, que é algo essencial e básico para a alimentação palestina”. Segundo ela, mercados esvaziaram as prateleiras para disfarçar a falta de produtos.
Moradores abrigados em instalações provisórias relatam restrição severa nas refeições. “Fazemos uma refeição por dia, dividindo pão entre cada pessoa. Comemos enlatados, lentilhas e arroz. Quando esse estoque acaba, não sei o que faremos, porque o que está disponível no mercado é escasso”, relatou uma mulher identificada como Muhammad ao UN News. Segundo o Escritório de Direitos Humanos da ONU, 70% das vítimas fatais do conflito são mulheres e crianças.
O relatório do IPC aponta ainda que cerca de 17 mil mães e 71 mil crianças sofrem de desnutrição aguda. O subsecretário-geral da ONU para Assistência Humanitária, Tom Fletcher, alertou que 14 mil crianças podem morrer até o fim desta semana caso a ajuda humanitária continue bloqueada. Ruth Barros reforçou o alerta ao descrever a situação de gestantes e lactantes: “A desnutrição entre as gestantes, entre as lactantes era muito séria”, relatou. Ela também destacou que a escassez de insumos inviabilizou a aplicação dos protocolos médicos.
A crise também resultou no aumento do número de órfãos. Segundo a agência palestina de estatísticas, cerca de 39 mil crianças perderam um ou ambos os pais desde o início dos ataques.
Ruth Barros relatou o caso de um colega de trabalho que, além dos próprios quatro filhos, passou a cuidar de quatro sobrinhos após a morte dos pais das crianças.
“Atualmente são oito crianças para alimentar. E ela contava que, quando chegava do trabalho, às vezes não tinha mais comida, porque as crianças já tinham comido”.
Organizações internacionais e governos têm aumentado a pressão por uma solução. A ONG israelense Gisha declarou que a política do governo de Tel Aviv representa um plano deliberado de expulsão da população.
“A admissão flagrante de uma série de crimes de guerra e possíveis crimes contra a Humanidade não deve ser enfrentada com silêncio”, afirmou a entidade.
Durante o Dia da Lembrança do Holocausto, um grupo de israelenses protestou em frente ao museu Yad Vashem, relacionando o sofrimento atual em Gaza à memória do próprio povo judeu.
“Não podemos nos lembrar do nosso sofrimento sem consideração o sofrimento de Gaza, a morte de dezenas de milhares de crianças”, declarou a sobrevivente Veronika Cohen ao The Guardian.
Em entrevista à BBC, o comissário da Agência da ONU para Refugiados Palestinos (UNRWA) afirmou que a obstrução à entrada de ajuda representa o uso da “fome como arma de guerra”. O secretário-geral da ONU, António Guterres, disse estar “muito alarmado” com o bloqueio.
O presidente francês Emmanuel Macron classificou a situação como “vergonhosa”, enquanto a chefe da diplomacia da União Europeia, Kaja Kallas, anunciou apoio majoritário à revisão do acordo de associação com Israel.
Nos Estados Unidos, o presidente Donald Trump declarou recentemente que “muitas pessoas estão passando fome” em Gaza. Embora mantenha apoio ao governo israelense, Washington anunciou que a Fundação Humanitária de Gaza poderá iniciar entregas nos próximos dias, sem apresentar detalhes sobre o plano.
Apesar das críticas, o governo israelense manteve sua posição. O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu afirmou que os apelos internacionais são “um troféu para o Hamas”. O Ministério das Relações Exteriores de Israel classificou as manifestações como resultado de “uma obsessão anti-Israel”. “Orações e pressão externa não nos farão desviar de nosso caminho”, disse o porta-voz Oren Marmorstein à AFP.
Em declaração à imprensa, membros do Exército israelense indicaram que, caso o bloqueio seja mantido, diversas regiões poderão ficar completamente sem alimentos.
“Não precisamos esperar por uma declaração de fome em Gaza para saber que as pessoas já estão passando fome, doentes e morrendo, enquanto alimentos e medicamentos estão a minutos de distância”, afirmou Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor da Organização Mundial da Saúde.