A Turquia vem sendo o centro das atenções do imperialismo há muito tempo e várias foram as tentativas de derrubada de Erdogan do poder, primeiro com um violento golpe de Estado que o dirigente turco conseguiu controlar e derrotar. Foi feita uma verdadeira “limpeza” de possíveis cúmplices do golpe, seja no Judiciário, seja nas Forças Armadas. Nas últimas eleições presidenciais, o imperialismo apoiou claramente um candidato de oposição a Erdogan, que conseguiu vencer as eleições. Agora parece que estamos em presença de uma “revolução colorida” cujo objetivo é pura e simplesmente derrubar Erdogan.

O gatilho para esse processo foi a prisão, pelas forças governamentais, de Ekrem Imamoglu, presidente da câmara de Istambul e favorito, segundo todas as pesquisas, para derrotar Erdogan nas próximas eleições presidenciais. Começaram a ocorrer grandes movimentos de protesto, confrontando a proibição governamental de protestos e manifestações. Inicialmente comandadas pelos estudantes de Istambul, a maior cidade do país, com 16 milhões de habitantes, as manifestações começaram a atingir também a classe trabalhadora do país.

O governo respondeu com violenta repressão destes primeiros protestos, com várias centenas de detenções, que fez os movimentos aumentarem, se estendendo à capital Ancara, a Izmir e ao resto das grandes cidades, mobilizando dezenas de milhares de trabalhadores.

As raízes da agitação social

O capitalismo turco vive, há anos, uma profunda crise que tem sido reforçada pelos erros da política econômica do governo. A inflação elevada e a desvalorização da lira turca têm sido problemas persistentes. Erdogan tem adotado políticas econômicas contraditórias, o que o obriga a gastar bilhões de dólares para sustentar a cotação da lira. A inflação na Turquia tem sido um dos principais desafios econômicos nos últimos anos. Em março de 2025, a taxa de inflação anual foi de 38,1%, marcando o décimo mês consecutivo de queda. No entanto, ainda está em um nível elevado em comparação com padrões globais. Em 2024, a inflação foi de 60,9%, enquanto em 2023 foi de 53,9%. No entanto, tem sido maior a inflação de energia e alimentos: em março de 2025, os preços de energia aumentaram 40,2%, enquanto os alimentos subiram 35,1%. Os preços dos aluguéis cresceram 97,2%, impactando o custo de vida.

O PIB da Turquia tem mostrado crescimento nos últimos anos, apesar de estar em níveis decrescentes. Em 2023, o PIB atingiu 1.118,25 bilhões de dólares, representando 1,06% da economia mundial. A taxa de crescimento anual do PIB foi de 3,2% em 2024, impulsionada pelo consumo das famílias e pelo aumento dos investimentos fixos. A indústria turca tem um papel significativo na economia, com destaque para a manufatura, que registrou um PIB de 99,8 bilhões de dólares em 2024. O setor de serviços também teve um crescimento expressivo, atingindo 164 bilhões de dólares. O investimento fixo aumentou 6,1% no último trimestre de 2024, indicando um fortalecimento da economia. Quanto à balança comercial, as exportações representam 27% do PIB, enquanto as importações correspondem a 32%, resultando em um impacto negativo de 5% no PIB total. As principais exportações da Turquia incluem automóveis, máquinas, produtos químicos, têxteis e alimentos.

A Turquia é o 28º país mais desigual do mundo, com 40% da população a receber 16,5% do rendimento total, enquanto 1% de multimilionários controlam 40%. Entre esta plutocracia, 10% dos multimilionários detêm 70% da riqueza. A dívida externa duplicou desde 2022, atingindo um recorde de 525,8 bilhões de dólares no terceiro trimestre de 2024. O salário mínimo, que é pago a dois terços dos trabalhadores, quase não tem aumentado, e 14 milhões de assalariados (43% do total) auferem rendimentos que os colocam no limiar da pobreza.

O governo de Erdogan tem se tornado cada vez mais autoritário, apoiado em uma classe dominante que busca transferir o fardo da dívida para a classe trabalhadora e os setores mais desfavorecidos.

O regime esperava que a repressão destes primeiros protestos provocasse um refluxo, mas o efeito foi o de multiplicar as manifestações que se estenderam à capital, Ancara, e ao resto das grandes cidades, mobilizando dezenas de milhares de trabalhadores.

A derrota eleitoral de Erdogan e do seu partido AKP nas eleições municipais de abril de 2024 alarmou o governo. O resultado foi ainda mais surpreendente porque o governo controla todas as instituições do Estado, desde os tribunais ao Exército e à polícia, que utiliza à par das redes mafiosas e dos bandos paramilitares fascistas do próprio AKP (partido do governo) e dos seus aliados do MHP de extrema-direita.

A Turquia é formalmente uma “democracia parlamentar”, mas isso não passa de uma farsa. Na realidade, o regime bonapartista burguês de Erdogan tem características de uma verdadeira ditadura policial, em que a repressão é ampla e sistematicamente utilizada para aterrorizar a população, para atacar os seus opositores, especialmente a esquerda, milhares dos quais estão presos, e para esmagar os direitos democráticos do povo curdo, que representa 20% da população.

O AKP já perdeu as câmaras municipais das três maiores cidades, Istambul, Ancara e Izmir, em 2019. Em abril de 2024, apesar do envolvimento direto do próprio Erdogan na campanha, não só não conseguiu reconquistá-las, como obteve o seu pior resultado desde que chegou ao poder, com apenas 35% dos votos. Perdeu também a quarta e a quinta cidades mais populosas, Bursa e Antalya, e dezenas de outras. Além disso, no sul, a força mais votada foi o DEM, constituído por setores da esquerda turca e pelo movimento curdo de libertação nacional (sucessor do HDP, proibido de atuar por Erdogan). Outro problema para Erdogan foi o crescimento do Novo Partido do Bem-Estar, que se afirma conservador e islamista e que contesta o apoio do eleitorado do AKP entre os setores mais religiosos e conservadores.

Um regime em crise

Erdogan é um típico governante oportunista burguês. Ao mesmo tempo que condena o genocídio e faz declarações de apoio ao povo palestino, continua a fazer grandes negócios com o regime genocida de Netaniahu, tendo estabelecido uma aliança militar com Telaviv para invadir e dividir a Síria.

Um dos fatores que levou Erdogan a fazer um pacto com Israel e o imperialismo estado-unidense para derrubar Al-Assad foi tentar desviar a atenção da agitação social interna refletida nas eleições municipais e reconquistar setores do eleitorado que tinham votado nas forças islamistas. Erdogan procurou aparecer como um líder forte, colocando importantes líderes fundamentalistas do Estado Islâmico à frente do governo e reforçando o seu discurso chauvinista da Grande Turquia.

A estratégia de reforço do seu controle no norte da Síria fez Erdogan utilizar o exército turco e os seus apoiadores sírios, com a cumplicidade de Donald Trump, para assassinar centenas de curdos em Rojava e encorajar os massacres sangrentos de milhares de civis indefesos da minoria alauíta no noroeste.

Erdogan toma as medidas que forem necessárias com o único objetivo de se manter no poder. Mantém acordos comerciais com Putin, mas apresenta-se como defensor do governo neofascista de Zelensky, a fim de manter o apoio econômico e político da UE. Erdogan tenta se apresentar como um homem de paz, mas continua a reprimir brutalmente o movimento de libertação curdo, tanto na Turquia como na Síria.

A farsa da oposição de esquerda

A imprensa dominada pela burguesia e pelo imperialismo faz questão de apresentar o presidente da Câmara de Istambul e o seu partido, o CHP, como sendo de centro-esquerda. Na verdade, é um partido tradicional da burguesia turca. De fato, a direção do partido tentou inicialmente limitar o alcance do movimento, dedicando-se à política interna e a proclamar Imamoglu como seu candidato presidencial.

Imamoglu é um empresário que não tem divergências fundamentais com as políticas capitalistas de Erdogan, nem discorda da ideia de estabelecer a Turquia como uma grande potência regional. A sua liderança em Istambul, e a do CHP noutros municípios desde 2019, não resultou em quaisquer medidas a favor dos oprimidos.

Apesar de defender a luta contra a pobreza e a melhoria dos salários e das despesas sociais, para capitalizar o mal-estar existente, o CHP apoiou todas as medidas de austeridade, privatizações e cortes do governo, cerrando fileiras com o AKP e a extrema-direita na repressão contra o povo curdo e a esquerda.

Da mesma forma, defende sem restrições manter a Turquia na OTAN, utiliza da mesma hipocrisia de denunciar o sionismo enquanto aprova os acordos de Erdogan com os EUA e Israel para dividir a Síria. Imamoglu chegou inclusive ao ponto de iniciar sua campanha presidencial viajando a Damasco para apoiar os acordos firmados por Erdogan. Ele sempre declarou à burguesia turca, ao imperialismo estado-unidense e às burguesias europeias que manterá a essência destas políticas. Ele se coloca como o fiel representante do imperialismo, mostrando-se mais eficiente para desconstruir o descontentamento social.

O descontentamento da classe trabalhadora turca é tão grande que enfrenta fortemente as forças repressivas de Erdogan e não aceita que o movimento se restrinja à libertação de Imamoglu e à aceitação da sua candidatura — querem ir além. A força do movimento é tal que obrigou Imamoglu e outros dirigentes do CHP a apoiar a continuação da luta nas ruas. O que eles querem é evitar que o movimento evolua e se transforme numa greve geral que paralise o país. Já há milhares de manifestantes e sindicatos mais combativos, críticos das políticas de contenção da burocracia sindical, que já defendem esta ampliação da luta.

A importância da greve geral

A esquerda turca e o movimento de libertação nacional curdo enfrentam um momento de decisão. A primeira tarefa da esquerda anticapitalista e anti-imperialista é romper com qualquer colaboração de classe e apoio ao CHP.

A defesa de pactos e coligações eleitorais com esta força burguesa por parte dos dirigentes do DEM (ex-HDP), do Partido Comunista Turco (TKP) e de outras forças de esquerda resulta em mascarar o papel verdadeiro de Imamoglu.

Não cabe a essa esquerda manter qualquer subserviência ao CHP e à oposição burguesa a Erdogan. É necessária uma política de independência de classe que se traduza em um plano de luta que impulsione o movimento dos trabalhadores para a convocação de uma greve geral que aponte para uma nova alternativa no quadro da luta de classes na Turquia.

A luta contra a repressão do Estado e dos bandos fascistas do AKP e do MHP deve ter como objetivo a liberdade de todos os presos políticos, exigindo completas e absolutas liberdades democráticas. Devemos elaborar e divulgar no movimento um programa socialista claro, que mostre que, com a expropriação dos bancos e dos grandes grupos econômicos, com o controle dos trabalhadores, o desemprego, a pobreza e a precariedade de que sofrem milhões de pessoas podem ser resolvidos de uma vez por todas, oferecendo a todos habitação, educação, cuidados de saúde, salários e pensões dignos.

A Turquia está passando por momentos decisivos. Não se pode repetir uma política de alianças com a “burguesia liberal”, que tem dado como resultado o aprofundamento da opressão e da exploração dos trabalhadores. Nenhuma reforma burguesa, sejam comandadas por Erdogan ou Imamoglu, vai atacar e resolver os problemas da classe trabalhadora. Não é possível uma Turquia democrática sob o capitalismo. Só a transformação socialista do país pode abrir caminho a uma verdadeira democracia baseada na justiça social.

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Last Update: 18/04/2025