A cada dia surge uma nova alcunha: criptogate, shitgate, memegate. Ou, como sugere a manchete do diário Pgina/12, “criptonita”, uma referência ao mineral verde que suga os poderes do Super-Homem. As piadas remetem à fraude com uma criptomoeda inexistente que levou ao centro do escândalo o presidente Javier Milei. Desde 14 de fevereiro, o “libertário” parece um boxeur atordoado no ringue, golpeado, sem saber se chegará ao último round. Para ele, trata-se de uma novidade. Milei assumiu a Casa Rosada em 10 de dezembro de 2023 e nunca perdeu a iniciativa ou o domínio da agenda pública. Vangloria-se e é celebrado nos círculos ultraliberais do planeta por conduzir “o maior ajuste fiscal da história da humanidade”.
Agora, de repente, foi submetido a uma explosão de informações que seus esquadrões digitais não conseguem deter. A conta na rede X @Ashcryptoreal revelou que Karina Milei, irmã do presidente e secretária-geral da Presidência, recebeu dinheiro do operador Hayden Mark Davis, criador da criptomoeda e que aparece sorridente em fotos ao lado do presidente argentino. O governo desmentiu, mas não evitou a repercussão internacional. A conta tem mais de 1,6 milhão de seguidores em todo o mundo. Má notícia para um político, que como tantos outros da extrema-direita, jacta-se de suas habilidades comunicativas nas redes sociais.
O escritório argentino Moyano & Asociados, especializado em casos de insolvência internacional, enviou uma notificação à SEC, órgão regulador do mercado de ações nos Estados Unidos, ao FBI e ao Departamento de Justiça norte-americano. “Em Nova York, há corretores que se referem a Milei como o Madoff argentino”, afirmou um operador financeiro. Bernard Madoff, morto em 2021, foi condenado a 150 anos de prisão por ter enganado centenas de clientes em um desfalque de 65 bilhões de dólares.
Os fatos são claros. Como se fosse um agente financeiro e não presidente do país, Milei escreveu no X: “Argentina Liberal cresce!!! Este projeto privado será dedicado a incentivar o crescimento da economia argentina, financiamento de pequenos negócios e empresas argentinas. O mundo exige investir em $LIBRA”. Na mesma mensagem, acrescentou um link que levava ao token. Naquele momento, a cripto não existia, era tão somente uma “moeda meme”, como definem os especialistas. A recomendação presidencial deu vida ao produto. Os negócios foram abertos, mas uma hora depois um grupo de operadores retirou 82% da Libra de circulação. A cripto desapareceu do mercado e aqueles que acreditaram na divindade de Milei, capaz de multiplicar não pães, mas moedas, ficaram a ver navios.
O escândalo explodiu. Diante da repercussão, o presidente argentino apagou a mensagem anterior e tuitou novamente para tentar se defender. Disse ter apoiado “uma empresa privada com a qual, obviamente, não tenho nenhuma conexão”. E acrescentou: “Não estava familiarizado com os detalhes” da empreitada. A iniciativa era chamada de “Projeto Viva la Libertad”. O nome do partido de Milei é, justamente, La Libertad Avanza. Cada vez que termina um discurso, ele grita: “Viva a liberdade, carajo!” Muita coincidência. O esforço do governo tem sido negar a farsa. O “libertário” afirma ter apenas “divulgado” e não “promovido” a $LIBRA. Novos detalhes pipocam, no entanto, a cada minuto.
O “libertário” tem sido comparado a Bernard Madoff, famoso golpista de Wall Street
“Neste ano, haverá eleições legislativas nacionais, provinciais e municipais, e La Libertad Avanza não estava recebendo dinheiro suficiente para implantar fortes campanhas eleitorais nos 24 distritos da Argentina”, conta um líder de extrema-direita que pediu anonimato. Como acontece frequentemente no caso de um escândalo político, alguns eventos públicos recentes acabam iluminados. O que antes era misterioso torna-se compreensível. Em dezembro de 2024, Milei encomendou a destituição da diretora da receita federal argentina, Florencia Misrahi, que propôs criar um imposto sobre transações online. A justificativa para a demissão é ainda mais reveladora. “Este governo não vai perseguir as novas formas de negócios digitais”, observou o gabinete presidencial.
Mais de cem ações foram ajuizadas por investidores enganados pelos idealizadores da $LIBRA. Embora seja difícil alcançar a maioria necessária, a oposição peronista apresentou um pedido de impeachment de Milei. Ao contrário do Brasil, na Argentina nunca um presidente foi destituído por decisão do Congresso, apesar de o mecanismo estar previsto na Constituição. Segundo o constitucionalista Raúl Gustavo Ferreyra, o mandatário “estimulou finanças e negócios econômicos sem base legal, à beira da legalidade. Esses comportamentos se encaixariam na figura constitucional de ‘mau desempenho’”.
Em uma tentativa desesperada de se defender, Milei declarou a um amigo jornalista, Jonatan Viale, do canal de notícias TN, pertecente ao Grupo Clarín, que tuitou a respeito da $LIBRA “como cidadão, não como presidente”. Mas outro constitucionalista de prestígio, Andrés Gil Domínguez, afirmou que “a função de presidente da nação é exercida 24 horas por dia, durante sete dias e ao longo de todo o mandato”. Por isso, haveria motivos para o mandatário ser preso, caso venha a perder o cargo. Fosse um cidadão comum, correria o risco de ser detido sem julgamento político.
A entrevista gravada ao canal TN adicionou um novo escândalo ao original. Quando o jornalista Viale perguntou sobre as consequências judiciais do caso, o principal assessor da Presidência, Santiago Caputo, interrompeu o diálogo. Em seguida, o trecho foi regravado. Mas a gravação inteira da entrevista acabou vazada e viralizou nas redes sociais. O editor do YouTube do canal foi demitido.
Um dos afetados pelo golpe, um norte-americano que aparece no X como @ApeMP5, divulgou detalhes do relacionamento de Milei com a equipe da $LIBRA. @ApeMP5 publicou nas redes ter recebido mensagens ameaçadoras do próprio presidente argentino. “Se você continuar fazendo declarações falsas, tomarei medidas legais contra você. Mantenha meu nome fora disso, mandril.” Mandrill, escrito dessa maneira, é uma forma de e-mail transacional para comércio eletrônico. Com um l só significa babuíno. Uma ofensa que Milei lança de forma corriqueira contra os adversários: “Vou deixar seu rabo como um babuíno”. Desta vez, o presidente argentino precisa proteger a própria cauda, pois o inimigo é perigoso e está desesperado: ele mesmo. •
Publicado na edição n° 1350 de CartaCapital, em 26 de fevereiro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Criptonita’