Criação de uma moeda baseada em commodities III
por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva
Como se viu no capítulo anterior, sendo 192 os países reconhecidos no mundo, teríamos 36672 pares de moedas passíveis de cambiarem-se entre si. Para que esse número fosse atingido, bastaria que cada um dos 192 países negociasse com os 191 países restantes, o que provavelmente não aconteça, mas que seja um número bastante próximo disso. Hoje, as moedas dos países com que menos o Brasil negocia representam 5% das nossas reservas em moedas, haja vista que ainda há algum ouro monetário em posse do Banco Central. Essas moedas são tão pouco significantes que ficam numa rubrica de “outras moedas”. Ocorre que esse epíteto não significa que o comércio entre o Brasil e esses países não mencionados seja irrelevante. Quer dizer somente que não negociamos na moeda deles, eles não negociam na nossa e que o dólar e o euro assumem essa intermediação.
A capacidade computacional mundial permite que o comércio internacional torne-se multimoeda como se alardeia sob o apelido de Bretton Woods 2.0, mas isso, ao ver deste autor, traria uma instabilidade permanente porque o fluxo de crédito não acompanharia a diversidade monetária. Suponhamos que Angola precise de um novo porto, mas não tenha recursos para construí-lo. Seria preciso que buscasse parceria com outro país que, não somente o construa, como seja capaz de o financiar, digamos, a China. Isso deixaria Angola devendo em yuans. Se a África do Sul tivesse a capacidade técnica, mas não a financeira, estaria fora da concorrência, a não ser que ambos, Angola e África do Sul, concordassem em usar uma terceira moeda para essa transação. É só imaginar que países recorrem uns aos outros para obter recursos para pagamento de dívidas com o resto do mundo. A Embraer é um ótimo exemplo disso. Ela não pode vender em reais pelo simples motivo de que mais de 80% dos componentes vêm do resto do mundo. Tal seria se um avião fosse vendido por X1% na moeda M1, X2% em M2, X3% em M3, até que seu valor fosse todo pago. Aliás, esse valor seria de dificílima determinação. Quanto mais internacionalizada a economia mundial, mais difícil fica manter um comércio internacional multimoeda. Os exemplos são drásticos, mas coisas assim ocorreriam cotidianamente, até que uma nova moeda assuma o papel de reserva internacional de valor.
Essa moeda não poderia ser somente fiduciária porque a ameaça não seria extinta, só mudaria de nome. O lastro seria, forçosamente, uma commodity, mas qual?
O sucesso do dólar em Bretton Woods deveu-se a que, do mais rico ao mais pobre, todos os países tinham ouro. Claro que os Estados Unidos não passaram a custodiar todo ouro do mundo, mas conseguiu amealhar uma enorme parte dele. O fato de que nem todos os países detêm reservas de commodities é um dos maiores empecilhos para lastrear-se uma moeda internacionalmente aceita. O Brasil é um exemplo disso. A partir do momento em que os estoques reguladores foram praticamente extintos, se milho e soja compusessem o lastro de uma hipotética moeda, todo o lastro ter-se-ia esvaído e o país teria ficado descoberto internacionalmente. É evidente que o exemplo é meramente acadêmico, mas mostra que, se o lastro de uma pretensa moeda internacional não tiver sua posse compartilhada entre todos os países, como aconteceu com o ouro em Bretton Woods, a chance de sucesso é nula. Assim, se houver a intenção de se criar uma moeda lastreada em commodity, é preciso encontrar uma que seja imperecível na escala humana e que seja compartilhada por todos os países para que nenhum deles saia de zero no momento da implantação, preservando o comércio internacional.
Só existe um ativo compartilhado por absolutamente todos os países, a Terra, consequentemente, seus recursos. Ocorre que eles não são plenamente conhecidos por mais que haja geólogos, engenheiros de mineração e ambientalistas, todos usando os mais sofisticados meios, até satélites. Por causa disso, a Terra jamais será uma commodity capaz de lastrear uma moeda internacionalmente aceita. Tudo indica que a solução esteja nas reservas de carbono, seja sequestrado, seja retido. Pondo de outra forma, seria o carbono que deixou de ser CO2 somado ao carbono que, numa escala humana, ainda não esteve na condição de contribuir com o efeito-estufa. E o que comporia esse portfólio de carbono? As florestas, pois representam um estoque de carbono sequestrado; as reservas de carvão mineral, posto que é oriundo da redução da madeira; o manancial de petróleo, porque é um conjunto de hidrocarbonetos oriundos de microrganismos e assim por diante, cuja mensuração e definição de critérios é uma missão para os cientistas.
Os críticos dessa ideia alegam que alguns países como Brasil, Rússia, China e Austrália seriam beneficiados seja por sua extensão, seja pelos recursos que detêm, o que já era um problema insolvível nos tempos do ouro. A diferença é que as reservas em carbono variam consoante a preocupação ambiental de cada país orque ela passa a significar riqueza. Quanto mais o país for capaz de cliclar eu estoque de carbono, mais perenes serão suas reservas.
Se o carbono será a solução, ou se será água doce, quem sabe o ar puro, só o tempo dirá. Só resta uma certeza, que a riqueza será baseada em ativos ambientais.
Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou o mestrado na PUC, pós graduou-se em Economia Internacional na International Afairs da Columbia University e é doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Depois de aposentado como professor universitário, atua como coordenador do NAPP Economia da Fundação Perseu Abramo, como colaborador em diversas publicações, além de manter-se como consultor em agronegócios. Foi reconhecido como ativista pelos direitos da pessoa com deficiência ao participar do GT de Direitos Humanos no governo de transição.
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