Esta é a nona reportagem da série Por Dentro do Sistema Financeiro, uma parceria entre o Jornal GGN e a Contraf-CUT que busca analisar por dentro do Sistema Financeiro Nacional
Por fora, o mercado de crédito brasileiro chega a 2026 sob o signo da contradição. Por dentro, vive uma transformação estrutural que pode redefinir — ou aprofundar — desigualdades históricas no acesso ao financiamento.
A convivência entre uma política monetária persistentemente restritiva e uma revolução digital acelerada desenha um sistema financeiro de duas velocidades, no qual o custo do dinheiro continua alto para a maioria, enquanto nichos específicos passam a acessar crédito mais barato, ágil e tecnicamente sofisticado.
Mesmo com a inflação relativamente controlada, o crédito segue caro, escasso e seletivo. O resultado é um freio estrutural ao crescimento econômico, à capacidade de investimento das empresas e ao consumo das famílias — em especial das camadas mais vulneráveis e dos pequenos negócios.
Selic alta e crescimento baixo: a camisa de força do crédito
As projeções para 2026 apontam para um ambiente macroeconômico pouco favorável à expansão do crédito. Segundo estimativas de mercado, a taxa Selic deve permanecer em torno de 12,75% ao ano, enquanto o PIB cresce apenas 1,6%, ritmo insuficiente para destravar um ciclo robusto de investimentos. A inflação, medida pelo IPCA, tende a ficar próxima ao teto da meta, em torno de 4,16%, fornecendo ao Banco Central o argumento técnico para manter a política monetária restritiva.
O paradoxo brasileiro fica evidente na comparação internacional. O crédito ao setor privado corresponde a 76% do PIB, bem abaixo de países como o Chile (103%) e muito distante das economias centrais, como os Estados Unidos, onde se aproxima de 200%. O Brasil não sofre de falta de demanda por crédito, mas de um custo estruturalmente elevado que inibe sua expansão.
Esse cenário revela que o problema do crédito no país é menos conjuntural e mais político-econômico: trata-se de um modelo que combina juros altos, spreads elevados e forte concentração bancária.
O nó dos juros: risco fiscal e dependência externa
A manutenção da Selic em patamar elevado não pode ser explicada apenas pela inflação corrente. Há dois vetores centrais que funcionam como piso estrutural dos juros no Brasil.
O primeiro é o fato de todo o combate à inflação estar centrado no câmbio. A lógica da Selic é simples. Aumentando a Selic, aumenta o fluxo de dólares para o país, apreciando o real e reduzindo o preço (em reais) dos produtos com cotação internacional.
Para tanto, o indicador mais relevante é o carry trade – o ganho proporcionado pela operação de tomar crédito em moeda forte e aplicar em reais, sendo remunerado pela Selic. Os dois fatores fundamentais são o diferencial de juros e as expectativas de correção cambial.
O segundo vetor é externo. Com juros elevados e um déficit fiscal americano que gira em torno de 7,5% do PIB, o Federal Reserve (o Banco Central dos Estados Unidos) encontra pouco espaço para cortes agressivos. Para evitar fuga de capitais e manter o fluxo de investimentos estrangeiros, o Brasil precisa oferecer um prêmio de risco elevado — o que se traduz em juros altos por mais tempo. Há quem considere o premio de risco excessivo.
A transformação silenciosa: tecnologia contra os spreads
Enquanto o cenário macroeconômico impõe limites, o mercado de crédito passa por uma reengenharia profunda “por baixo do sistema”. Diferentemente dos ciclos tradicionais, essas mudanças têm caráter estrutural e atacam o coração do problema: os spreads bancários.
A duplicata escritural e o crédito para empresas
A entrada em vigor plena da duplicata escritural, a partir de 2026, representa uma das reformas mais relevantes do crédito empresarial nas últimas décadas. Ao substituir títulos físicos por registros eletrônicos vinculados à nota fiscal, o novo modelo reduz drasticamente o risco de fraude e de duplicidade de garantias.
O efeito esperado é semelhante ao que o crédito consignado produziu para pessoas físicas: mais segurança jurídica, menor risco e juros mais baixos. Embora o Brasil movimente entre R$ 11 trilhões e R$ 13 trilhões por ano em duplicatas, apenas cerca de R$ 3 trilhões são hoje usados como garantia. A nova infraestrutura pode destravar uma parcela significativa desse valor, especialmente para pequenas e médias empresas — historicamente as mais penalizadas pelo crédito caro.
Fintechs e a disputa pela base de clientes
Outro vetor de mudança vem das fintechs de crédito, cuja capilaridade permitiu a milhões de pessoas o acesso a ferramentas como cartão de crédito e linhas de empréstimo que seriam negadas pelos bancos vistos como tradicionais. Mas, ao mesmo tempo, permitiu uma exploração sem limites do pequeno poupador, submetendo-o a taxas de juros exorbitantes.
Entretanto, as fintechs também deslocam o centro do poder financeiro para quem controla dados, plataformas e relacionamento com o cliente — um movimento que pode redefinir o papel dos bancos, mas não necessariamente reduzir desigualdades de forma automática.
A consolidação do Pix Automático, prevista para janeiro de 2026, e a regulamentação definitiva do Banking as a Service (BaaS) ampliam ainda mais o campo de disputa. Ao permitir pagamentos recorrentes sem cartão de crédito e a entrada de empresas não financeiras na oferta de serviços bancários, essas inovações desafiam o oligopólio tradicional.
O outro lado da moeda: inadimplência e seletividade
Apesar do discurso de democratização, os riscos permanecem elevados. O Banco Central alerta para a deterioração da qualidade do crédito, com aumento dos ativos problemáticos entre famílias e micro, pequenas e médias empresas. O campo rural, em especial, apresenta sinais preocupantes, com inadimplência acima de 8%.
Isso significa que o crédito mais barato não será universal. Nem que as maiores garantias aos bancos significaram qualquer redução nos spreads bancários.
Desta forma, pode-se dizer que o cenário para o crédito em 2026 tende a funcionar de duas maneiras distintas: de um lado, o crédito tradicional, caro, concentrado e dependente de uma política monetária rígida. No segundo, um ecossistema digital valendo-se do consignado e da garantia do FGTS para impor taxas exorbitantes ao consumidor, com um mínimo de risco..
Seja qual for o modelo, o crédito está longe de ser um direito social, para se transformar em uma máquina de concentração de renda.