Publicada em 1988, A Piada Mortal (The Killing Joke), com roteiro de Alan Moore e arte de Brian Bolland, tornou-se uma das obras mais influentes sobre o Coringa — e, por extensão, sobre a natureza do mal nos quadrinhos. A HQ é enxuta, quase uma peça teatral, em que Batman e Coringa se enfrentam mais pela ideia de insanidade do que por qualquer embate físico. Em poucas páginas, Moore propõe uma provocação: bastaria um único dia horrível para transformar qualquer pessoa em um monstro?
O texto, considerado canônico para muitos leitores, ajudou a redefinir o Coringa como figura trágica, vítima de um mundo que o esmagou antes que ele pudesse enlouquecer por vontade própria. A violência e a sugestão de um passado miserável parecem querer explicar o inominável: por que alguém riria diante da dor? Por que o caos seduz mais do que o sentido?
Décadas depois, o filme Coringa (2019), dirigido por Todd Phillips e interpretado por Joaquin Phoenix, ampliou esse mesmo argumento: o vilão como produto do abandono, da exclusão social, da doença mental ignorada. Um palhaço oprimido, empurrado ao abismo. Mas será que o mal precisa de justificativa? Será que todo vilão precisa de trauma para existir?
A origem que nunca existiu
Em A Piada Mortal, o Coringa conta sua suposta história de origem: um comediante fracassado, arrastado para o crime, que perde tudo — esposa, filho, dignidade. E enlouquece. A narrativa é poderosa, mas duvidosa. Moore faz questão de deixar claro que nem mesmo o Coringa confia em sua própria memória. “Às vezes eu me lembro de uma forma, às vezes de outra… se tenho que ter um passado, prefiro que seja de múltipla escolha.” O leitor é, então, confrontado com a possibilidade de que tudo aquilo seja uma mentira — uma “piada mortal”.
Essa ambiguidade é o cerne da HQ. Não há redenção, nem justiça, nem verdade. Só o vazio onde o riso vira tortura e o palhaço não diverte — apenas contamina. O Coringa de Alan Moore não quer empatia. Ele quer provar que o mundo é tão louco quanto ele. Sua proposta a Gordon, a Batman e ao leitor é simples: o caos é inevitável — e só os hipócritas fingem controle.
O filme Coringa de 2019, por outro lado, abandona essa ambiguidade. Joaquin Phoenix encarna Arthur Fleck, um homem derrotado por todas as instituições ao seu redor. Abusado, ridicularizado, abandonado, Arthur se transforma em Coringa diante do colapso emocional — mas agora com razões. É a lógica do trauma que vira narrativa: o vilão é, no fundo, um injustiçado. Isso pode gerar empatia, mas também um problema narrativo mais profundo — a tentativa de moralizar o mal.
Ao dar explicações demais, o filme parece desejar que o espectador compreenda, ou mesmo aceite, a loucura como resposta legítima à dor. É diferente de A Piada Mortal, onde não há resposta — só o horror da ausência dela.
Heath Ledger: o caos sem rosto
Em O Cavaleiro das Trevas (2008), o Coringa vivido por Heath Ledger resgata, com força, o espírito de A Piada Mortal. Ele também tem um passado — ou vários. E conta cada um deles conforme a ocasião. Uma hora, diz que seu pai o mutilou. Noutra, que foi por amor à esposa. Nunca sabemos se é verdade. E isso faz toda diferença.
Ledger criou um Coringa que não precisa de origem, de trauma fixo ou diagnóstico. Ele não quer vingança: quer apenas provar que qualquer um pode ser tão podre quanto ele, se empurrado com força suficiente. Seu plano com Harvey Dent, seu jogo com Gotham, são todos variações da mesma tese: o mundo civilizado é uma ilusão frágil. O caos é a verdade.
E é por isso que esse Coringa, como o de Alan Moore, permanece inquietante. Porque ele não pede para ser entendido. Ele não quer que sintamos pena — quer que ríamos com ele. Sua ameaça é absoluta porque não tem centro.
O Coringa de Joaquin Phoenix, embora excelente como estudo de personagem, acaba tornando o mal… compreensível. Não menos assustador, mas mais socialmente justificável. E isso muda tudo.
Vale a pena ler A Piada Mortal (e ver Coringa)?
Sim. Mas por motivos diferentes — e com olhos críticos. A Piada Mortal é uma HQ brilhante, concisa e perturbadora. Sua força está na ambiguidade. Não é uma história de origem; é uma refutação de todas elas. Ler Moore e Bolland é mergulhar numa fábula obscura sobre como a loucura não precisa de causa. E sobre como o riso pode ser uma forma de silêncio diante do absurdo.
Já o filme Coringa (2019) é poderoso, mas também um espelho da era contemporânea, em que até o mal exige contexto. É um filme sobre a doença mental, sobre a negligência social, sobre como o sistema abandona os seus. Tudo isso é válido — mas, como história sobre o Coringa, talvez diga menos do que pensa.
Heath Ledger, em 2008, talvez tenha nos deixado a versão mais completa do Coringa: imprevisível, sem passado confiável, sem plano, sem desejo de redenção. O mal como impulso puro. E por isso mesmo, mais verdadeiro.
A pergunta final é incômoda: precisamos sempre entender os monstros para aceitá-los? Ou seria mais honesto, mais difícil — e mais adulto — admitir que o mal às vezes simplesmente é?