A nova edição do Entrelinhas Vermelhas, veiculada nesta quinta-feira (4), traz a entrevista com Inamara Mello, diretora do Departamento de Políticas para Adaptação e Resiliência à Mudança do Clima do Ministério do Meio Ambiente. Ela analisa o balanço da COP30, realizada em Belém, e aponta os desafios decisivos para a diplomacia climática brasileira — da crise do multilateralismo à força dos combustíveis fósseis.
Convidada do programa, Inamara afirma que a conferência sediada na Amazônia representou um marco político global e um divisor de águas na centralidade dos povos indígenas e na disputa por rumos da transição energética.
Belém no centro do mundo: COP30 supera desafios e consolida protagonismo brasileiro
Segundo Inamara, o balanço da COP30 é “extremamente positivo”, apesar do cenário internacional adverso — com guerras, instabilidade energética, disputas geopolíticas e ausência de representantes de alto nível dos Estados Unidos.
A decisão de sediar o encontro no coração da Amazônia é vista pela diretora como “politicamente certa”, por aproximar diplomatas das realidades territoriais e colocar florestas, desigualdade e justiça climática no centro da agenda.
Ela destaca que a participação social foi um dos pontos altos da conferência, em contraste com COPs anteriores sediadas por países petroleiros. Marchas, manifestações indígenas e mobilização popular reforçaram o caráter democrático da reunião.
O ano mais quente da história e o alerta científico ignorado
A COP30 ocorreu sob a confirmação global de que 2024 foi o ano mais quente já registrado. No Brasil, regiões chegaram a experimentar picos de 3°C acima da média, segundo Inamara.
Para ela, o avanço da ciência não deixa margem para negacionismo: ventos extremos, secas severas, enchentes e perdas de vidas já fazem parte do cotidiano de praticamente todos os países.
“Esse futuro que antes era projetado para as próximas décadas já chegou”, resume.
Mesmo assim, a diplomacia enfrentou grande dificuldade para construir consensos — especialmente no tema central da COP: o abandono dos combustíveis fósseis.
Capitalismo, petróleo e a trava estrutural da transição energética
Um dos trechos mais contundentes da entrevista ocorre quando Inamara atribui a lentidão global da transição energética a um fator estrutural:
“Temos a hegemonia de um modelo de desenvolvimento que é petroleiro.
O sistema capitalista se alimenta da desigualdade, do consumo e da devastação ambiental.”
Ela afirma que a indústria fóssil “dita as regras” das negociações internacionais e impede compromissos mais ousados, apesar das evidências científicas e dos riscos crescentes.
Inamara defende que empresas como a Petrobras precisam migrar para uma lógica de “empresa de energia”, e não de petróleo.
Mapa do Caminho: vitória política brasileira, apesar do bloqueio
Embora o Mapa do Caminho para o afastamento dos combustíveis fósseis não tenha entrado nos documentos formais da COP, a diretora destaca que foi uma conquista ele ter sido colocado na mesa — algo inédito e fruto direto da atuação da diplomacia brasileira e do presidente Lula.
A proposta foi incorporada ao documento da presidência da COP, que segue sob responsabilidade do Brasil até o fim de 2025. Para Inamara, isso abre espaço para avanços reais no próximo período.
Países ricos ainda fogem da responsabilidade climática
Ao abordar o princípio das “responsabilidades comuns, porém diferenciadas”, Inamara diz que o impasse central permanece o mesmo: países ricos querem que nações pobres reduzam emissões, mas se recusam a financiar adaptação climática — custo que recai sobre populações já vulneráveis.
Ela lembra que 95% dos recursos atuais vão para mitigação, não para adaptação, e que o custo da inação é muito maior do que investir preventivamente.
Amazônia expõe o mundo real: pobreza, calor extremo e vulnerabilidade
A escolha de Belém tornou impossível ignorar a realidade vivida por milhões.
Calor extremo, chuvas intensas, saneamento precário e desigualdade ficaram evidentes diante dos delegados internacionais.
A marcha indígena, descrita como “galharda e contundente”, simbolizou o protagonismo dos povos tradicionais na COP30.
Mais que discurso: COP30 cobra mudanças concretas para políticas públicas
Inamara destaca que acordos internacionais moldam políticas nacionais, estaduais e municipais — e sua execução efetiva depende de participação social ampliada.
Ela cita a iniciativa AdaptaCidades, que apoia estados e municípios na elaboração de estratégias climáticas, e convida movimentos, sindicatos, associações e comunidades a se engajarem.
“Sem superar o capitalismo, não há futuro climático possível”
Nos minutos finais da entrevista, Inamara afirma que a noção de desenvolvimento sustentável foi capturada pelo capital e esvaziada:
“Eles pintaram tudo de verde, mas mantiveram o mesmo ritmo de exploração dos recursos naturais e das pessoas.”
Para ela, um futuro viável exige um modelo alternativo — “uma civilização ecológica” e um sistema que coloque a vida, e não o lucro, no centro.