
COP30 em Belém: Hoteleira familiar adaptativa, por Roberto Cunha
Este texto foi redigido durante uma estadia de quinze dias em uma hospedaria familiar adaptativa em Belém, capital do Pará, em agosto de 2025. A experiência permitiu uma imersão na complexidade social, econômica e cultural da cidade, que, ao sediar a 30ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP30), tornou-se palco de debates que ultrapassam as questões ambientais para alcançar as tensões históricas e estruturais do Norte brasileiro.
A Amazônia, reconhecida mundialmente por sua biodiversidade e papel crucial na regulação do clima global, assume protagonismo indiscutível na agenda ambiental internacional. Contudo, a escolha de Belém para sediar a COP30 revela, simultaneamente, as contradições entre esse reconhecimento e as desigualdades históricas e preconceitos que afetam a região e sua população.
A partir dessa vivência local, este texto busca discutir as tensões e desafios enfrentados no setor de hospedagem durante eventos de grande porte, como a COP30, refletindo as dinâmicas econômicas, sociais e culturais que moldam o desenvolvimento regional no Norte do Brasil.
Amazônia e Belém: o protagonismo regional e suas contradições
A Amazônia configura-se como uma das regiões geoestratégicas mais decisivas para o futuro da humanidade, dada sua vastidão territorial, biodiversidade incomparável e capacidade ímpar de regulação climática global. Neste contexto, a escolha de Belém como sede da COP30 transcende a mera dimensão simbólica, representando um reconhecimento explícito da centralidade da Região Norte nas agendas ambientais e geopolíticas internacionais contemporâneas.
Entretanto, esse protagonismo ambiental não se traduz automaticamente em valorização social, econômica ou política para a população local, que historicamente convive com processos estruturais de marginalização, invisibilização e estigmatização. A capital paraense, à semelhança de outras metrópoles da Amazônia, carrega o peso de um legado colonial eurocêntrico que concebeu a região como um espaço periférico, subdesenvolvido e “selvagem” — uma narrativa que persiste no imaginário coletivo nacional e internacional.
Esse preconceito estrutural manifesta-se em discursos hegemônicos que simplificam a complexidade cultural e econômica do Norte, desconsiderando sua pluralidade étnica e cultural — composta por populações indígenas, quilombolas, ribeirinhas e urbanas — e suas potencialidades econômicas que transcendem o extrativismo tradicional. Assim, o Norte permanece relegado a um lugar subalterno no projeto nacional, um reflexo das desigualdades regionais brasileiras enraizadas em séculos de exclusão.
Ao sediar a COP30, Belém enfrenta, portanto, o desafio de romper essas narrativas estigmatizantes e de afirmar sua relevância e capacidade enquanto centro dinâmico de produção de saberes, cultura e resistência. A conferência oferece uma oportunidade ímpar para a reinvenção da imagem da Amazônia e de sua capital, exigindo um olhar respeitoso e equitativo que reconheça a região em toda a sua complexidade e diversidade.
Por fim, a articulação entre o local e o global que a COP30 propicia pode servir como plataforma para a ampliação das vozes amazônicas no debate climático, político e econômico, reafirmando a indispensabilidade da região para a sustentabilidade planetária, mas também para a justiça social e o desenvolvimento inclusivo no Brasil.
Os preços de hospedagem na COP30: mercado, percepção e tensões
A elevação abrupta dos preços de hospedagem em Belém durante a COP30 tornou-se um dos temas mais emblemáticos do evento, suscitando debates intensos acerca da dinâmica mercadológica local e das percepções sociais sobre os impactos econômicos gerados. Diárias que alcançaram valores próximos a R$ 15 mil, especialmente em estabelecimentos de maior porte, provocaram reações diversas, desde a indignação pública até a proposta de intervenções regulatórias, como o tabelamento de preços por parte do poder público.
Para compreender este fenômeno, é imprescindível contextualizá-lo na lógica intrínseca do mercado, onde o preço representa um indicador sensível à relação entre oferta e demanda. Eventos de magnitude internacional, ao concentrarem uma demanda excepcionalmente elevada em um curto intervalo temporal, naturalmente tensionam a capacidade do setor hoteleiro local, sobretudo em cidades cuja infraestrutura ainda não acompanha as exigências de tais eventos globais.
O aumento dos preços, portanto, é resultado direto de uma oferta limitada frente a uma demanda extraordinária, reforçada por desafios logísticos e pela própria visibilidade internacional conferida ao evento. Tal fenômeno não deve ser interpretado simplificadamente como mera especulação ou oportunismo isolado dos agentes locais, mas como um reflexo estrutural de desequilíbrios setoriais e regionais.
As propostas de controle de preços, embora compreensíveis diante da pressão social, enfrentam limitações práticas e econômicas significativas. Medidas de tabelamento podem gerar efeitos perversos, como a escassez artificial de vagas, redução da qualidade dos serviços ofertados e desestímulo a investimentos futuros em infraestrutura hoteleira. Assim, a solução perpassa pela ampliação da capacidade de oferta e pela modernização estrutural do setor, elementos cruciais para responder não apenas a demandas extraordinárias, mas para fortalecer a competitividade regional em um horizonte de médio e longo prazos.
Este contexto evidencia a necessidade de políticas públicas específicas que equilibrem a proteção do consumidor com o estímulo ao desenvolvimento sustentável e à autonomia dos empreendimentos locais, garantindo que o crescimento do setor turístico não ocorra em detrimento da inclusão social e do respeito às particularidades regionais.

Elasticidade da Oferta: hoteleira familiar adaptativa
A elasticidade da oferta, no âmbito econômico, refere-se à capacidade do mercado ou de um empreendimento em ajustar a quantidade de bens ou serviços ofertados em resposta às variações da demanda ou dos preços. Por ora, denomino esse tipo de empreendimento, que alia flexibilidade, autonomia familiar e rápida capacidade de adaptação a demandas excepcionais, como uma ‘hospedaria familiar adaptativa. No setor de hospedagem, tal elasticidade é fortemente condicionada por fatores estruturais — desde a disponibilidade de infraestrutura física, passando pela qualificação da mão de obra, até os recursos financeiros e o tempo necessário para implementar adaptações ou expansões.
Em contextos urbanos marcados por desigualdades históricas e limitações econômicas, como ocorre em Belém, essa elasticidade tende a ser reduzida, especialmente no setor formal e de grande porte. No entanto, o fenômeno da hospedaria familiar adaptativa surge como uma estratégia emergente e inovadora, capaz de ampliar substancialmente essa elasticidade no curto prazo, conciliando flexibilidade, autonomia e reinvenção constante.
A hospedaria familiar adaptativa caracteriza-se por pequenos empreendimentos familiares que, diante de desafios e oportunidades específicas, conseguem readequar sua oferta de serviços por meio de investimentos próprios, criatividade e esforço concentrado. Essa capacidade de adaptação se manifesta na rápida modernização de suas instalações, na ampliação da qualidade e diversidade dos serviços, e na incorporação de inovações que dialogam diretamente com as exigências de um público altamente especializado e internacional, como o da COP30.
No caso particular da hospedaria na qual estive hospedado, o exemplo é paradigmático: um estabelecimento tradicionalmente localizado em um bairro histórico, com diária média habitual em torno de R$ 350, reajustou sua oferta para R$ 6 mil diante da demanda excepcional. Essa mudança, longe de ser mera especulação, refletiu investimentos substanciais — com capital próprio — em infraestrutura, incluindo climatização adaptada ao clima equatorial, modernização de quartos, aquisição de enxovais completos e reformulação do atendimento para incorporar fluência bilíngue.
Tal ajuste evidenciou a elasticidade da oferta na sua forma mais dinâmica e resiliente: a capacidade de uma unidade familiar, inserida em um mercado regional marcado por limitações históricas, responder rapidamente a uma conjuntura global, assegurando não apenas maior rentabilidade, mas também a qualidade e a competitividade necessárias para atender padrões internacionais.
Essa modalidade de hospedagem destaca-se, ainda, pela incorporação de elementos culturais locais na prestação do serviço, promovendo uma experiência turística autêntica que agrega valor e diferenciação no mercado. A confluência entre tradição regional e modernidade operacional exemplifica uma estratégia eficaz para pequenos e médios empreendimentos familiares enfrentarem a competição globalizada, reforçando a relevância da economia e do empreendedorismo local no desenvolvimento regional sustentável.
No plano das políticas públicas, a visibilidade desse modelo adaptativo indica a necessidade de mecanismos específicos de apoio, como linhas de crédito acessíveis, capacitação técnica focada em hospitalidade e gestão, e programas de fomento ao turismo sustentável que valorizem e potencializem o protagonismo das hospedarias familiares. Tais medidas contribuiriam para ampliar a resiliência do setor, garantir a inclusão socioeconômica e estimular o fortalecimento da cadeia produtiva local.
Portanto, a hospedaria familiar adaptativa em Belém não apenas representa uma resposta estratégica à pressão de eventos excepcionais como a COP30, mas simboliza uma forma inovadora de resistência econômica e cultural, alicerçada na capacidade de reinvenção, na autonomia e na valorização das especificidades regionais amazônicas.
Conclusão: olhar para o Norte com respeito e realismo
A realização da COP30 em Belém evidenciou que os desafios enfrentados pela região Norte vão muito além da agenda ambiental global, incorporando contradições históricas, econômicas e culturais profundamente enraizadas. O preconceito estrutural contra o Norte, aliado à insuficiência crônica de investimentos em infraestrutura e políticas públicas adequadas, reforça desigualdades que limitam o pleno desenvolvimento socioeconômico e o reconhecimento da riqueza cultural da Amazônia.
Entretanto, experiências locais, como a da hospedaria familiar adaptativa, revelam que é possível, mesmo diante de limitações estruturais, articular formas inovadoras e sustentáveis de desenvolvimento regional. Essas hospedarias, ao combinarem flexibilidade, autonomia familiar e capacidade de rápida adaptação às demandas excepcionais, não apenas ampliam a elasticidade da oferta no setor turístico, mas também promovem um modelo de crescimento econômico que valoriza a cultura local e fortalece a identidade regional.
Para que tais iniciativas possam se consolidar e se expandir, torna-se imprescindível o engajamento ativo do Estado, que deve atuar por meio de investimentos direcionados em infraestrutura, linhas de crédito acessíveis, programas de capacitação técnica e o fomento à ciência e tecnologia aplicadas à realidade amazônica. Esse apoio institucional é fundamental para que a economia local possa superar as barreiras estruturais e construir um desenvolvimento sustentável, equitativo e integrado.
A valorização do Norte brasileiro exige, portanto, um olhar respeitoso e realista, que reconheça a complexidade da região e promova estratégias que respeitem sua diversidade e potencialidades. A ampliação do protagonismo amazônico nos debates globais e nacionais só será legítima se acompanhada por políticas públicas robustas que impulsionem o crescimento econômico com justiça social e preservação ambiental.
Por fim, eventos emblemáticos como o Círio de Nazaré — que anualmente congrega cerca de dois milhões de fiéis pelas ruas da cidade — evidenciam a capacidade organizativa, cultural e econômica da população local. Além disso, o REPÁ — o clássico futebolístico entre Remo e Paysandu que movimenta Belém pelo menos oito vezes ao ano — simboliza, com sua luz e resistência, não apenas a força do Mangueirão lotado, mas também a dignidade, a cultura e a resiliência do povo amazônico e paraense.
Roberto César Cunha – Geógrafo e doutor em Geografia Econômica
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